Elara
O dia amanheceu diferente. Não sei explicar bem como… havia algo no ar, como uma névoa invisível que pairava sobre mim. Quando abri os olhos, ainda deitada na cama estreita, senti um arrepio subir pela espinha. Era como se alguém tivesse sussurrado meu nome bem perto do ouvido, mas o quarto estava silencioso, apenas o ranger do vento batendo na janela de madeira.
— Elara! — a voz do meu pai ecoou da cozinha, seca e firme como sempre. — Vai ficar dormindo até quando? O sol já está alto!
Respirei fundo e me levantei devagar, tentando me livrar daquela sensação incômoda. Mas ela não ia embora. Vesti o vestido simples, amarrei os cabelos ruivos num coque desajeitado e saí para a cozinha.
Meu pai já estava sentado à mesa, o semblante carrancudo, mastigando um pedaço de pão duro como se estivesse em guerra com ele. Os olhos dele me fitaram com aquela severidade que sempre me fazia encolher.
— O que está acontecendo com você, menina? — perguntou sem rodeios, batendo o pão contra a mesa para tirar as migalhas. — Anda com a cabeça nas nuvens, distraída, lenta. Ontem derrubou água, queimou o pão… e agora? Vai ficar olhando pro nada o dia inteiro?
Engoli em seco. Ele sempre foi assim, duro, exigente. Mas ultimamente parecia que qualquer deslize meu era imperdoável.
— Eu… eu não sei, pai. Acho que não dormi bem.
Ele bufou, levantando-se para pegar mais lenha para o fogo.
— Isso não é desculpa. Dormir mal não é motivo para andar com cara de sonhadora. Você precisa aprender a viver no mundo real, Elara. Largar esses devaneios. Sonho não enche barriga.
As palavras cortaram fundo, mas eu me calei. Não adiantava argumentar. Nunca adiantava. Ele sempre teria razão, e eu sempre seria a filha distraída e incapaz de manter os pés no chão.
Enquanto ele ralhava, minha mente vagava… e, inevitavelmente, a imagem dele surgiu diante de mim. O estranho. O cavaleiro de olhos escuros que apareceu de repente no vilarejo. A forma como me fitou, como se me conhecesse, como se me visse de verdade. A lembrança do tom grave de sua voz perguntando meu nome ainda reverberava dentro de mim, como se tivesse se gravado na pele.
Balancei a cabeça para espantar a sensação, mas foi inútil. Ele estava lá. Sempre lá.
— Está me ouvindo, Elara? — a voz ríspida do meu pai me trouxe de volta.
— Sim, pai. — respondi, mesmo não sabendo o que ele havia dito.
Ele suspirou pesadamente e me olhou de cima a baixo.
— Você precisa parar de viver nesse mundo de sonhos. Isso só vai te trazer problemas.
Concordei em silêncio, mas por dentro meu coração batia descompassado. Se sonhar era errado, porque parecia tão impossível parar?
Mais tarde, decidi ir ao campo colher flores. Era uma desculpa para me afastar da dureza da casa e respirar um pouco de ar livre. Sempre gostei das flores do prado, especialmente as silvestres que nasciam mesmo entre pedras e espinhos. Talvez porque me lembrassem de mim mesma: frágeis por fora, mas insistentes em permanecer.
Carregando uma pequena cesta, caminhei até a encosta onde o vento soprava mais forte. O sol iluminava os campos, mas ainda assim havia algo estranho no ar. Como se cada folha, cada pétala estivesse impregnada por uma energia que eu não sabia nomear.
Abaixei-me para colher algumas margaridas e senti um arrepio no braço, como se alguém me observasse. Virei rápido, mas não havia ninguém. Apenas o campo, vasto e silencioso. Respirei fundo, tentando me acalmar.
— Elara! — uma voz feminina chamou ao longe.
Reconheci de imediato. Sorri aliviada e acenei para Maeve, minha amiga de todas as horas. Ela vinha correndo pelo caminho de terra, os cabelos castanhos presos em duas tranças soltas, e um sorriso sempre presente nos lábios. Maeve era tudo o que eu não era: falante, ousada, cheia de vida.
— Você anda sumida! — ela disse, quase sem fôlego, quando chegou perto. — Estava começando a achar que tinha se esquecido de mim.
— Nunca me esqueceria de você, nós vimos ontem, sua doida— respondi, abraçando-a.
— Mas hoje ainda não, e já passa das dez horas.
Rimos e nos sentamos na grama, e logo ela percebeu minha expressão distante. Maeve sempre percebia.
— O que houve? — perguntou, estreitando os olhos. — Você está estranha. Mais quieta que o normal.
Mordi o lábio, hesitante. Como eu poderia explicar algo que nem eu mesma entendia?
— Eu… tenho me sentido diferente. Como se houvesse algo dentro de mim que não consigo controlar.
Ela arqueou a sobrancelha, curiosa.
— Diferente como?
Suspirei e brinquei com uma pétala entre os dedos.
— Como se estivesse… ligada a alguém. Como se uma parte de mim não me pertencesse mais.
O sorriso dela se abriu, malicioso.
— Ah, então é disso que se trata! Você está apaixonada! É o estranho do outro dia?
— Não, não é isso — rebati rápido, corando. — Quer dizer, eu nem conheço ele direito.
Maeve arregalou os olhos, animada.
— Mas está caidinha por ele.
Respirei fundo, tentando organizar meus pensamentos.
— Aquele estranho. — Hesitei, lembrando do arrepio que senti quando ele me fitou. — É como se ele tivesse entrado na minha alma sem permissão.
Minha amiga inclinou a cabeça, interessada.
— E você não consegue parar de pensar nele, certo?
Assenti, envergonhada.
— É mais do que isso, Maeve Quando ele me olhou… foi como se o mundo tivesse parado. Como se eu tivesse esperado aquele instante a vida inteira, sem nem saber.
Ela ficou em silêncio por um momento, estudando meu rosto. Depois, colocou a mão sobre a minha.
— Elara… isso parece sério. Mas você não sabe quem ele é, de onde veio. Pode ser perigoso.
— Eu sei. — Sussurrei. — Mas não consigo evitar. É como se tivesse algo dentro de mim… me puxando para ele.
O vento soprou mais forte, e minhas palavras ecoaram no vazio do campo. Maeve apertou minha mão e tentou sorrir.
— Bem, se for destino, não há como lutar contra. Mas tenha cuidado, está bem? Prometa que vai ter cuidado.
Assenti, mas por dentro eu sabia que estava mentindo. Porque, no fundo, não tinha a menor intenção de resistir.
A tarde caiu, mas aquela sensação estranha continuava comigo. Era como se minha alma tivesse se transformado, como se meu coração tivesse começado a bater em um ritmo diferente desde que encontrei aquele estranho. Adrian. O nome dele se repetia dentro de mim, como uma oração secreta.
E, apesar do medo, apesar das dúvidas, uma parte de mim desejava revê-lo. Como se ele fosse a resposta para todas as perguntas que eu nunca soube fazer.