Elara
O dia terminou como tantos outros, pesado e cheio de broncas que pareciam me perseguir como sombras. Meu pai, sempre impaciente, encontrou um motivo para gritar comigo novamente: desta vez, porque eu demorei para ir lavar a louça e entrar em casa depois de colher flores no campo. Cada palavra dele caía como pedras sobre meus ombros, esmagando qualquer vontade de questionar ou me defender.
— Elara! — sua voz rugiu da cozinha. — Você ainda está aí fora? Já está escurecendo! Vai entrar, menina! Ou vai deixar tudo virar bagunça?
Engoli em seco, sentindo a mistura de raiva e medo me atravessar. Levantei-me, carregando a cesta de flores quase vazia, e caminhei lentamente em direção à casa. Meu coração batia acelerado, não apenas por causa da bronca, mas também por algo que eu não conseguia nomear. Algo que se enroscava em meu peito desde que o vi pela primeira vez.
Quando finalmente entrei, ele não poupou palavras:
— Vai lavar a louça agora e depois se deita. Você vive sonhando acordada, Elara. Sempre com a cabeça nas nuvens! — Seus olhos penetrantes me avaliavam, buscando qualquer sinal de desafio.
— Sim, pai… — murmurei, tentando não tremer.
Parte da noite foi uma sequência de movimentos mecânicos: lavar pratos, arrumar a cozinha, guardar as flores. Cada gesto parecia pesado, carregado de uma monotonia quase cruel. Mas, ao mesmo tempo, minha mente não parava de voltar para ele. Adrian. A imagem do cavaleiro de olhos escuros, seu corpo firme, a forma como me olhou no vilarejo, tudo rodopiava em minha cabeça.
Por que ele me tira o sossego assim? — pensei, sentindo um arrepio percorrer meu corpo. — Não o conheço… e, ainda assim, não consigo esquecê-lo.
Quando finalmente consegui me livrar da cozinha, estava tudo em ordem limpo e arrumado, meu corpo exausto pediu descanso, mas a mente permanecia acordada, insistindo em repetir cada detalhe daquele encontro estranho e intenso da noite anterior. Deitei-me na cama estreita, envolta em lençóis que não ofereciam conforto suficiente para afastar os pensamentos que me consumiam.
Fechei os olhos, tentando imaginar algo que não fosse ele… mas era impossível. Cada tentativa de distração falhava miseravelmente. A imagem de seus olhos, tão profundos e sombrios, me seguia, me encarava de dentro da escuridão do quarto.
Demorei a pegar no sono, e quando finalmente meus olhos se fecharam, já era tarde. Um silêncio estranho pairava sobre a casa, pesado e inquietante. Então, ouvi. Primeiro, apenas um sussurro no vento. Depois, um som que me fez gelar da cabeça aos pés: um uivo profundo, vindo da floresta próxima.
Meus olhos se abriram rapidamente. Sentei-me na cama, agarrando o travesseiro como se ele pudesse me proteger. O uivo se repetiu, mais alto, mais próximo desta vez, e meu coração quase saltou pela boca. Nunca tinha ouvido nada assim tão próximo da nossa casa. Um medo primitivo me envolveu, e, sem pensar, levantei-me e corri até o quarto do meu pai.
— Pai! — sussurrei, batendo levemente na porta. — Você está ouvindo isso? Tem… tem um barulho na floresta!
Ele se levantou, franzindo a testa, como se a simples ideia de que algo pudesse estar errado fosse absurda.
— O que você está dizendo, menina? — sua voz era firme, quase ríspida. — Não existe nada lá fora. Vai se deitar e dormir. Está inventando coisas outra vez.
— Mas, pai! — minha voz se quebrou, e senti lágrimas ameaçando escapar. — Eu juro que ouvi! Foi um uivo!
Ele suspirou e balançou a cabeça. — Elara, você está perturbada. É só o vento. Não há nenhum uivo. Agora, vá dormir, menina.
— Não é pai. tem algo lá fora. — Insisti com lágrimas já brotando nos olhos.
— Volte para seu quarto e dorme, aí você não vai escutar mais nada.
— Mas eu estou com medo! — choraminguei.
— Não acha que tá grandinha para ter medo do escuro?
— Tem algo lá fora, estou lhe dizendo.
— Me deixa dormir, amanha eu acordo cedo para ir pra lida. e chega de conversa.
Voltei para o meu quarto, mas o calor do medo não me deixou. Sentei-me na cama, abraçando o travesseiro com força. Cada sombra no canto do quarto parecia se mover, cada ranger da casa soava como passos desconhecidos. Meu coração não encontrava sossego, e os pensamentos sobre Adrian se misturavam com o medo do uivo.
“Por que ele me tirou a paz?” — pensei. — “Por que não consigo esquecê-lo?”
Fechei os olhos novamente, tentando acalmar a respiração, mas o uivo voltou. Dessa vez, mais distante, mas ainda assim claro o suficiente para me fazer estremecer. Minha mente tentava racionalizar, mas cada instinto me dizia que algo estava próximo, algo que não podia ser humano.
A noite passou lentamente. Sentei-me na cama, abraçando o travesseiro, os olhos fixos na janela, esperando que algo se aproximasse ou se afastasse. Cada som do vento, cada farfalhar de folhas, cada sombra projetada pela luz da lua parecia carregar uma presença. Eu queria fechar os olhos e esquecer, mas não conseguia.
Quando finalmente, senti o peso do sono me afetar, mas o medo ainda estava ali, como um nó apertado no peito. Permaneci sentada, agarrada ao travesseiro, os cabelos caindo sobre o rosto, os pensamentos confusos tentando entender o que aquele uivo significava.
Adrian. Mais uma vez, seu rosto cruzou meus pensamentos. Por que ele parecia tão presente mesmo quando estava ausente? Por que minha mente insistia em trazê-lo à tona, misturando desejo e medo de uma forma que eu jamais havia sentido?
O vento trouxe outro uivo, desta vez tão próximo que parecia atravessar a madeira da casa. Tremi, sentindo meu corpo inteiro encolher. O coração batia acelerado, a respiração curta, e eu percebi que a noite seria longa, talvez interminável.
Enquanto o sol começava a aparecer no horizonte, os primeiros raios filtrando-se pelas frestas da janela, eu ainda estava ali, sentada, agarrada ao travesseiro, incapaz de me mover ou deixar o medo ir embora. Era como se algo na floresta tivesse se fixado em mim, como se o uivo fosse apenas um chamado, uma promessa de que minha vida não seria mais a mesma.
E, por mais que tentasse afastar os pensamentos, Adrian ainda estava lá, como um enigma que não podia compreender, mas que meu coração parecia reconhecer.