Senhor Introspectivo

Marina

Me afasto de lá completamente confusa. Percebo que minhas mãos estão tremendo, então as enfio no bolso da calça, disfarçando. A hostilidade dele comigo é tão evidente que chega a ser quase palpável, como um letreiro luminoso piscando na minha cara. Será que só eu percebo isso? Ou todo mundo resolveu, convenientemente, fingir que não vê?

Ele me culpa pelo acidente? Sério... é isso?

Porque, honestamente, não tem outra explicação. Hoje de manhã, por exemplo, ele preferiu tomar café no quarto, a enfrentar o tormento da minha presença na sala de jantar. E quando a vida nos pregou a peça de cruzarmos no corredor — bem no momento em que eu ia ao meu agora quarto escovar os dentes —, ele respondeu ao meu “bom dia” com uma secura que poderia desidratar um cacto no deserto. Formal. Cerimonioso. Frio. Gélido. Dá vontade de estender um termômetro e perguntar se está tudo bem na Antártida particular dele.

Ele anda pelo mundo como se carregasse uma placa no pescoço: “Perigo: homem raivoso. Não se aproxime. Pode morder.”

E pensar que um dia eu realmente quis conhecê-lo. Tinha uma curiosidade absurda sobre Santino. Sempre procurei fotos dele na casa, mas parecia missão impossível. Até que um dia achei e ele não se parecia nada com o homem de agora. Um jovem de sorriso fácil. Contudo, ninguém falava dele. Era como se o assunto fosse tabu, uma caixa preta que ninguém ousava abrir.

O pouco que sei dele é aquele básico do básico, aquele release pobre que Lola me entregou: arquiteto bem-sucedido, atualmente trabalhando na construção de um shopping na África — sim, na África, porque aparentemente, ele não poderia escolher nada mais longe —, vinte e sete anos, solteiro. Só. Isso. Nem uma notinha de rodapé sobre cicatrizes, queimaduras ou... qualquer coisa remotamente relevante sobre seu estado atual.

E, claro, agora entendo o motivo desse silêncio. As marcas... Sim, foram do acidente. É óbvio. Não precisa ser um gênio para concluir isso.

Segundo Lola, ele era um terror com as mulheres. O tipo que não podia ver um rabo de saia que já saía correndo atrás. Pena que a corrida foi cancelada, aparentemente. Porque, o Santino que vejo agora não tem absolutamente nada desse perfil. O que vejo é um homem que se fechou em si mesmo... um arquipélago isolado no meio de um oceano de amargura.

E sabe o que me deixa ainda mais desconfortável? Por que eles nunca me contaram sobre isso? Era algum tipo de cláusula de confidencialidade familiar? Uma pegadinha? Uma surpresa de mau gosto?

Talvez achassem que, se eu soubesse, eu dramatizaria. Imagina... logo eu... dramática? Jamais. Suspiro, cruzando os braços.

A única certeza que tenho agora é que tudo isso me pega completamente de surpresa. E o mais irônico é que, se antes eu nutria alguma expectativa sobre ele... bom, acho que acabei não perdendo muita coisa nessa ignorância forçada, não.

—Estava te procurando. — A voz de Lola me tira dos devaneios assim que entro na sala. Ela parece... apreensiva. Ótimo. — Onde você estava?

—Fui ver tio Lúcio... — Respiro fundo, cruzo os braços e disparo, sem rodeios: — O que há com Santino? Por que ele deixa tão claro que não gosta de mim?

Ela pisca, como se eu tivesse acabado de puxar o tapete dela. O sorriso que surge no rosto dela? Forçado. E péssimo, diga-se de passagem. Nota zero para a atuação.

—Querida... não entendi sua pergunta...

—Ah, entendeu, sim. Desembucha, Lolita. — Estreito os olhos. — Você acha mesmo que eu não percebo? Santino me trata como quem cumprimenta um desafeto no velório. Frio. Educado até demais. Daquele tipo que dá vontade de responder “obrigada, igualmente”, mesmo quando a pessoa não desejou nada. E o olhar dele? Parece que me quer a quilômetros de distância. — Solto o ar, apertando os lábios. — Ele me culpa pelo acidente, não é?

—Meu Deus! Nem se atreva a pensar uma coisa dessas! — Lola empalidece de um jeito que quase me convence... Quase.

—Não? Então me explica. — Ergo uma sobrancelha. — Porque, sinceramente, alguém que não vê a outra há anos e, no reencontro, a trata como um cachorro sarnento... precisa de terapia. No mínimo.

Ela fica tensa. O sorriso vira um espasmo nervoso.

—Marina... você tem uma imaginação muito... fértil. Deve ser culpa desses romances que anda lendo.

—Ah, claro. Porque é óbvio que eu li um livro onde o mocinho trata a mocinha como se ela fosse um vírus em potencial. — Reviro os olhos. — Lola, por favor... Ele não é assim com você, nem com tio Lúcio. Só comigo. Isso tem nome e sobrenome.

Ela solta um suspiro, ajeita uma almofada que, honestamente, já estava perfeitamente no lugar, e tenta parecer calma.

—Santino é um bom rapaz. Só... só ficou mais fechado desde o acidente. É recluso, introspectivo.

—Introspectivo é pouco, Lolita. Isso aí tem outro nome no dicionário.

Ela força um sorriso, sem sucesso.

—E ele não te vê há três anos, querida. As coisas... bom, as coisas vão se ajeitar. Confia.

Confia... até parece que estou pedindo Uber e o motorista mandou essa mensagem automática.

Penso em uma frase que ouvi certa vez: “Não corra atrás de quem demonstra viver bem sem você.” E, olha... parece que ela foi escrita sob medida para essa situação.

Suspiro, me jogo no sofá, e cruzo as pernas.

—Você já contou para o senhor “Introspectivo” que eu estou morando aqui? Que agora é oficial, definitiva, sem direito a devolução?

Lola me olha, séria, segurando o espanador como se fosse uma espada medieval.

—Não... Ainda não falei nada. — Ela me observa de um jeito que não gosto. Muito menos confio.

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