Meu pai

Santino

Sinto um choque. Um choque tão grande que, por um momento, sinto meu corpo inteiro congelar na porta. Por mais que Lola me tenha avisado sobre o estado de saúde do meu pai, ouvir... é uma coisa. Ver... é outra completamente diferente.

Ali, deitado naquela cama enorme — que um dia parecia pequena para comportar toda a imponência e força de Lúcio Berluccine — agora só existe um homem quebrado. Frágil. Pálido. Dolorosamente... mortal.

Meu peito se comprime, uma pressão amarga, sufocante, invade minha garganta. Ele parece... pequeno. Pequeno demais. Sua pele, antes bronzeada e cheia de vitalidade, agora tem um tom amarelo-pálido, doente. Magro. Muito mais magro do que eu imaginava ser possível.

E então meus olhos se fixam no corte. Um grande corte que cruza seu peito, marcado, recente. A prova viva da cirurgia cardíaca que, segundo os médicos, ele precisou enfrentar... mas que talvez, só talvez, tenha sido sua última batalha.

Eles não sabem quanto tempo ainda lhe resta. Nenhum deles soube me dar essa resposta. Nem dias. Nem meses. Só aquele maldito silêncio médico que fala mais do que qualquer diagnóstico: “Prepare-se.”

Sinto meu corpo inteiro tensionar. Solto um suspiro pesado, tentando controlar a avalanche de emoções que ameaça me engolir.

E então, como uma lâmina que corta sem pedir licença, vem ela... a sensação odiosa. Aquela culpa asquerosa, traiçoeira, que me enfia as garras no peito sem piedade.

Eu me afastei por tanto tempo.

Fecho os olhos, tomado por um espasmo repentino de angústia, e luto contra a vontade de me encolher ali mesmo. Mas... como não me afastar? Como? Foi a única maneira que encontrei de catar os pedaços do que sobrou de mim. De refazer minha vida. De me levantar.

Se eu não tivesse ido embora, se não tivesse colocado oceanos de distância entre mim e tudo isso... eu não sei se teria sobrevivido. A verdade nua, crua, dolorosa e feia é essa.

A lembrança do meu acidente me golpeia como sempre faz. Cruel. Implacável. Eu vejo tudo. O fogo. O metal. O cheiro de sangue misturado ao cheiro da morte. Vejo tudo, como um filme que nunca para de ser exibido dentro da minha cabeça.

Balanço a cabeça, aperto as têmporas com os dedos, como se isso fosse capaz de expulsar os fantasmas, e me forço a focar no que importa. No agora. No homem que está ali. No meu pai.

Me aproximo da cama. Seus braços, antes fortes, agora parecem dois gravetos. Frágeis. Ossudos. Só um lençol branco cobre seu corpo. Me sento lentamente ao lado dele e, com cuidado, pego sua mão.

Que frio...

Está tão fria que meu peito aperta mais ainda. Fria, mesmo com o calor abafado do quarto.

Desde que parti, só voltei duas vezes. E, em cada uma, não fiquei mais que cinco dias. Me joguei no trabalho, tentando não olhar para trás. Virei a cara para tudo. Para as lembranças. Para a dor. Para o que eu tinha me tornado.

Três longos anos na África. Três anos enterrando o que eu fui.

Trabalhei como arquiteto em Akwanga, na Nigéria. Me joguei de cabeça no projeto de construção de um grande shopping. Cada parede que eu erguia, cada pilar, cada centímetro de concreto... era mais um pedaço da minha fuga.

E foi no meio de uma noite qualquer, quando já estávamos nas etapas finais da obra, que o telefone tocou. Era Lola. E, na primeira palavra que ela disse, eu soube. Antes mesmo dela completar a frase... eu soube.

O mundo parou.

Transtornado, no dia seguinte larguei tudo. Consegui um voo, graças a Deus, e vim direto para a Inglaterra. E, se existe algum tipo de misericórdia divina, é que... eu cheguei a tempo.

Não...Não! Não posso pensar assim.

Ele não vai morrer. Ele não pode morrer.

Meu pai sempre foi forte. Forte como aço. Forte como pedra. Ele vai sair dessa. Vai! Ele vai se recuperar. Vai se levantar dessa cama e, em breve, gritará com os operários no jardim ou brigará com Lola sobre qualquer reforma desnecessária.

E, como se meu pensamento tivesse o poder de evocá-lo, ele abre os olhos.

Lentamente. Cansado. Pesado. Mas... abre.

Seus olhos encontram os meus. E, naquele instante, é como se uma parte do meu peito quebrasse e outra se remendasse ao mesmo tempo.

—Filho... — Ele sussurra, e sua voz, apesar de fraca, está carregada de emoção.

Aperto sua mão com mais força. Forço um sorriso, mesmo que minha garganta esteja fechada, apertada, quase sufocando.

Não consigo falar de imediato. Só consigo... segurar. Segurar sua mão como se aquilo fosse me ancorar à realidade.

—Estou feliz em vê-lo. — Ele tosse, e a dor é visível em cada músculo do rosto.

—Eu... eu também, pai. — Respondo, com a voz embargada, rasgando minha própria resistência.

—Você... está bem. Forte como um touro. — Força um sorriso, mesmo entre a tosse que parece rasgar seus pulmões.

—Papai, não fale muito. Não se esforce. — Levo minha mão à dele, segurando com todo o cuidado do mundo, como se ele fosse quebrar se eu apertasse demais.

Ele tenta sorrir. Mas, nos olhos... nos olhos há tristeza. Uma tristeza que me atravessa como uma lança.

—Estava morrendo de saudades. — Confessa, com aquele tom que mistura amor e despedida.

É aí que não aguento. Apoio minha testa na mão dele e deixo que as lágrimas me traíam. Que caiam, silenciosas, queimando como fogo sobre minha pele.

Mas enxugo rápido. Engulo a fraqueza. Endireito os ombros. Não. Não na frente dele. Não agora. Eu preciso ser forte. Preciso ser o homem que ele sempre esperou que eu fosse.

—Eu também, papai. Eu também. Estou feliz por estar... em casa.

Ele então me estuda com aquele olhar perspicaz que sempre teve.

—Já viu... Marina? — pergunta, como se essa simples frase não fosse uma granada jogada no meio do nosso momento.

Sinto meu corpo inteiro enrijecer. Desde o acidente, nunca mais tinha visto Marina. Nunca. Todas as vezes que vim, me certifiquei de que ela não estaria. E, sinceramente, não foi difícil. Ela vivia viajando, com aquela carreira de modelo que, aparentemente, tomou a vida dela.

Lola então... ah, Lola. Essa, então, nem se fala. Se apegou tanto à Marina que é como se ela fosse sua filha biológica. A garota órfã, assustada, silenciosa... virou a preciosidade da minha tia.

Inspiro fundo. —Já. — Respondo, seco.

—E...? — Ele arqueia a sobrancelha, me estudando.

—E nada, pai. — Cruzo os braços, apertando-os contra o peito, como se isso pudesse conter o desconforto. —Ela continua... na mesma. — Suspiro, e completo, mais baixo: —Melhor assim. Tudo ficou no passado.

—Como foi... a reação dela ao te ver? — pergunta, cuidadoso, tossindo de leve.

Não consigo segurar uma risada amarga. Curta. Sem humor nenhum.

—Achou que eu fosse um ladrão. Ou um psicopata. Ou... sei lá. — Passo a mão no rosto, exausto só de lembrar. —Cheguei de madrugada. Fui direto para o meu antigo quarto. Como eu poderia imaginar que ela estava lá? Se eu soubesse... se eu soubesse, jamais teria ido. Você sabe disso.

—Sei. — responde, pensativo, respirando com dificuldade.

Estreito os olhos. —Lola não te contou? — pergunto, desconfiado. Porque, honestamente, se existe uma coisa que Lola não sabe fazer... é guardar segredo.

Meu pai ri, mesmo que entre tosses. —Contou. Mas eu queria... ouvir de você.

—Sabia... — Bufo, meio sorrindo, meio sem acreditar.

Baixo os olhos, fitando minhas próprias mãos, perdido em pensamentos. E, inevitavelmente, a cena volta.

Aquele olhar.

Aquele pavor nos olhos dela quando me viu.

A pergunta que me assombra, mesmo que eu lute contra ela: Se não fosse pela minha aparência... ela teria me olhado diferente?

Sinto um peso no ambiente. Aquela sensação de estar sendo observado.

Levanto os olhos... e lá está ela.

Parada na porta. Sem ação.

—Entre, Marina. — Meu pai a convida, como se sua entrada não fosse uma explosão prestes a acontecer.

Meu coração dispara. Nem raciocino. Me levanto no automático.

—Pai... depois eu volto. — falo, apressado, já quase saindo. —Fiquem à vontade.

—Imagina, só porque eu cheguei? Fique. — Ela responde, erguendo o queixo, os olhos verdes brilhando com um desafio que me faz querer rir e socar uma parede ao mesmo tempo.

Desvio o olhar, aperto a mandíbula, lutando contra a vontade de responder.

—Depois eu volto. Conversamos com calma. — digo, tentando manter a compostura, mirando meu pai, não ela.

—Não! Fique. Afinal... você já, gentilmente, cedeu seu quarto para mim. Não quero abusar da sua hospitalidade. — responde, e o tom... ah, aquele tom carregado de ironia que ela domina como ninguém.

Aperto os dentes. Mantenho meu rosto impassível. E me sento novamente, como se aquilo não fosse uma batalha silenciosa.

Assim que ela sai, me forço a focar no meu pai. Tentando... desesperadamente... puxar meu cérebro para outro lugar.

Falo do meu trabalho na África. Da construção. Da falta de infraestrutura. Dos desafios.

Falo como quem descreve um documentário da National Geographic, na esperança de que meu coração esqueça, por alguns minutos, o caos que ela causa só de existir no mesmo cômodo que eu.

Meu pai ouve, calado, seus olhos pesados de cansaço.

Quando percebo que ele já não aguenta mais, me inclino.

Beijo sua testa.

—Descanse, papai.

E, por Deus... como eu desejo que aquele descanso seja só uma soneca. Não... não algo maior.

 

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App