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Ponto de vista do narrador
O despertador tocou antes que o sol tivesse coragem de aparecer. Natália abriu os olhos devagar, sentindo o peso da noite mal dormida ainda preso nos cílios. O quarto pequeno parecia menor a cada dia — talvez porque, de repente, o mundo inteiro tivesse ficado grande demais para ela carregar. Do outro lado da casa, os trigêmeos já discutiam alguma bobagem. Era sempre assim: seis horas da manhã e eles soavam como se estivessem narrando uma final de campeonato. Natália suspirou, puxou o cobertor e deixou o frio beijar seus pés antes de tocar o chão gelado. — Nat, a água acabou! — gritou um dos irmãos. Ela nem se preocupou em identificar qual deles reclamava agora. — Põe no fogo! — respondeu, amarrando os cabelos num coque rápido. O espelho devolveu a imagem de uma versão cansada de si mesma. Não era vaidade o que lhe faltava; era tempo. Desde o acidente do pai — desde aquela maldita ligação da empresa em que o pai trabalhava — Tudo havia mudado. Tudo dentro dela também. Descendo para a cozinha, encontrou o pai sentado à mesa, a perna presa por pinos, ferros e todo o arsenal necessário para reconstruir ossos que agora doíam mais que o orgulho. Ele folheava o jornal com uma expressão que tentava — mas não conseguia — esconder a frustração. — Dormiu bem, filha? — perguntou, sem erguer muito a voz. — Dormi — ela mentiu. Como sempre. A mãe entregava marmitas, ajeitava o uniforme dos meninos, conferia mochilas. Era um vendaval de movimento, enquanto Natália servia o café. — Você ainda pode voltar a estudar no próximo semestre — disse a mãe, do nada, como se aquele pensamento tivesse despencado da prateleira mais alta direto para o meio da mesa. Natália sorriu de canto. Era um sorriso que ela já sabia usar como escudo. — E atrasar tudo? Não dá. O curso não vai se fazer sozinho, mãe. O pai suspirou. Ele odiava ter se tornado um peso, mesmo que ninguém jamais dissesse isso em voz alta. Ela percebeu. Ele percebeu que ela percebeu. E, por isso, desviou o olhar. A verdade era simples e cruel: se Natália não trabalhasse o dia inteiro, as contas não fechariam. Se deixasse a faculdade, seus sonhos rachariam junto. E, se confessasse o quanto estava assustada, talvez desmoronasse de vez. Não agora, pensou. Um passo de cada vez. Respira. Vai. O ônibus lotado transparecia a pressa. Natália segurou firme na barra metálica enquanto as pessoas se empurravam como se a sobrevivência dependesse daquele único veículo. O dia mal começara e ela já sentia o cansaço pulsando atrás dos olhos. O trabalho na pequena papelaria do centro não era ruim — só era repetitivo e, ultimamente, esmagador. Era caixa, atendimento, reposição, limpeza, tudo ao mesmo tempo. Tudo para que, no fim do mês, ainda faltasse um pouco para tudo. Às oito da noite, quando finalmente cruzou os portões da universidade, o corpo estava exausto, mas a mente despertava. Era ali que ela lembrava por que ainda não desistira. O corredor cheirava a tinta velha e café barato. Os estudantes passavam rindo, conversando alto, vivendo uma leveza que ela mal lembrava como era. Foi então que ela o viu. Carlos Eduardo Nóbrega Linhares. O nome comprido combinava bem com o ar de quem parecia carregar o mundo na ponta dos dedos e não tinha medo de deixá-lo cair. Ele estava encostado na parede, rindo com alguns amigos — um sorriso fácil, bonito, cheio de luz. Suas roupas de grife e os sapatos combinando denunciavam: o típico garoto de elite. Ele olhou na direção dela por acaso. Ou talvez não. O olhar dele prendeu o dela por um segundo longo demais. Natália desviou rapidamente, sentindo um calor tolo subir pelo pescoço. Seguiu até seu armário. Seria a primeira aula da noite, e ela estava animada. Pensava no trabalho que precisava entregar e, no fundo, agradecia pelo emprego na papelaria — apesar de exaustivo, permitia que ela imprimisse seus trabalhos. Era uma das poucas que ainda entregava tudo impresso e, às vezes, virava motivo de piada. Mas ela não se importava. Seus pensamentos foram interrompidos pela voz de alguém que ela já observara algumas vezes, mas sempre evitava — porque sabia que seus mundos eram diferentes. — Oi — ele disse, aproximando-se. A voz era tranquila, com um charme despretensioso que parecia treinado desde o berço. — Oi — ela respondeu, tentando esconder o turbilhão interno. Carlos se aproximou, mostrando a tela do celular onde aparecia o nome da disciplina. — Organização e Gestão Educacional. Às oito e quinze — disse ele, com aquele sorriso tranquilo. — Sim. Natália confirmou. — Também estou nessa. Carlos sorriu como se aquilo fosse uma coincidência maravilhosa. — Ótimo. Podemos entrar juntos, se quiser. Era só uma frase. Só uma gentileza. Só uma aproximação casual entre dois estudantes em um dia comum. Mas algo dentro dela — algo que Natália não sabia nomear — tremeu. Talvez fosse o cansaço. Talvez fosse o fato de que, pela primeira vez em muito tempo, alguém a olhava não como uma obrigação, não como uma responsabilidade, não como a filha que precisava ser forte. Ele a olhava como alguém que valia a pena conhecer. Natália respirou fundo. — Claro — respondeu. — Vamos. E, quando entraram juntos na sala, lado a lado, ela sentiu o primeiro desvio do caminho que jurara seguir. O tipo de desvio que não avisa. O tipo que pode mudar tudo. Mas Natália ainda não sabia disso. Ninguém poderia prever o que estava por vir. Ainda não sabia que alguns amores não começam com promessas — e sim com pequenos acidentes de percurso. E que, às vezes, o imprevisto é o primeiro passo para nunca mais voltar à normalidade. O comum já não fazia parte de seu vocabulário — e nunca mais faria. E, além do cruzar de caminhos, outros olhares já se voltavam para eles. Em breve, as primeiras turbulências começariam — e ventos fortes costumam espalhar o fogo, não apagar.






