— A rotina

Ponto de vista do narrador

O caminho até o trabalho era sempre o mesmo: rua comercial, bares ainda fechados, ônibus passando devagar demais para quem está atrasado e rápido demais para quem precisa atravessar.

Natália caminhava com passos firmes, tentando ignorar a sensação de déjà vu que sempre sentia nas manhãs — como se vivesse o mesmo dia repetidas vezes.

A fachada da papelaria surgiu diante dela: Papel & Arte, letras gastas na placa, vitrine com alguns cadernos coloridos e arranjos de canetas que tentavam parecer mais interessantes do que realmente eram.

Ela empurrou a porta de vidro, que balançou o sininho pendurado no alto.

— Bom dia, Nat! — chamou Dona Rosa, a proprietária, sem desviar os olhos das notas fiscais espalhadas no balcão.

— Bom dia — respondeu Natália, guardando a bolsa no armário dos funcionários.

O ambiente tinha cheiro de papel novo, tinta e café requentado. A iluminação fluorescente fazia o lugar parecer sempre meio frio, mas Natália estava acostumada.

Ela colocou o crachá e começou a rotina:

Conferir o estoque de canetas gel, repor lápis de cor, organizar pastas por cor — azul, verde, vermelha — e recolher embalagens rasgadas deixadas por clientes curiosos demais.

Era um trabalho simples, mecânico. E às vezes, exatamente por isso, doloroso — deixava espaço demais para pensar.

Dona Rosa apareceu ao lado dela, segurando uma prancheta.

— Ah, querida, vê se dá uma olhada no setor de impressões também. A máquina colorida tá teimosa desde ontem, acho que só funciona com você — disse, com aquele sorriso de quem já decidiu que a funcionária vai aceitar.

Natália assentiu.

— Pode deixar, eu olho.

Caminhou até a máquina de xerox. O visor piscava um alerta irritante:

> Erro 02 — Cartucho desalinhado.

Ela revirou os olhos.

— Ah, claro. Logo cedo…

Puxou a gaveta interna, ajustou os cartuchos, bateu levemente para encaixar e fechou. A máquina fez um ruído estranho, pensou um pouco, e então voltou à tela normal.

— Viu? Só funciona com você — Dona Rosa comentou, passando com um monte de envelopes nas mãos.

Natália sorriu de leve.

Clientes começaram a entrar:

Mães procurando cadernos, estudantes atrás de folhas para trabalho escolar, gente pedindo impressão urgente como se a impressora fizesse milagres.

Natália atendia todos com paciência. Era boa nisso — discreta, educada, raramente perdia a calma.

Quase no meio da manhã, enquanto repunha borrachas no expositor, ouviu alguém chamar:

— Natália, tem um atendimento pra você no balcão!

Ela caminhou até lá e encontrou uma mulher loira segurando um pendrive e um maço de folhas. Vestia roupas sociais demais para aquela hora da manhã.

— Preciso imprimir isso aqui — a cliente disse, sem cumprimentos, como se Natália fosse parte do mobiliário.

Natália pegou o pendrive e continuou o atendimento, mas no fundo, sentia uma pontada discreta, incômoda — e não sabia se era o peso do encontro anterior, a voz de Carlos ainda ecoando na mente ou algo que ainda estava por vir.

Mas ela seguiu o dia.

Era só mais uma manhã na papelaria até o momento em que Natália ouviu uma vozinha doce, cheia daquele encanto que só crianças muito pequenas têm.

— Papai, olha axi. É axi!

A menina, com bochechas redondas e o cabelo preso em dois coquinhos tortos, apontava para a vitrine com a empolgação de quem tinha acabado de encontrar um tesouro. O pai — um homem alto, pele morena escura, cabelos e barba feitos de forma impecável, um terno azul e camisa branca por baixo do terno, uma expressão cansada, mas nitidamente encantado pela filha — sorriu sem saber exatamente o que ela queria.

Natália se aproximou, abaixando-se até a altura da garotinha.

— Você quer ver essa borracha da Moranguinho? — perguntou com delicadeza, abrindo um sorriso suave.

A menininha arregalou os olhos, impressionada, e balançou a cabeça com tanta força que os coquinhos balançaram junto.

— Qué! Qué essa! Axi, ó! — esticou as mãozinhas miúdas.

Natália abriu a vitrine e pegou a borracha com cuidado. A borracha era a boneca moranguinho e tinha o mesmo cheirinho de morango. A menina pegou com as duas mãos como se segurasse um bebê de cristal.

— Cheiim di môgu! — ela disse, levando a borrachinha ao nariz e rindo baixinho.

O pai soltou uma risada envergonhada.

— Desculpa, moça, ela ama qualquer coisa que tenha cheiro. É um perigo.

— Imagina — Natália respondeu. — Ela é uma fofura.

A pequena continuou examinando a borracha, totalmente hipnotizada, até de repente olhar para Natália como se tivesse lembrado de algo muito importante.

— Moça, pode leva pa mim? — perguntou com a maior seriedade do mundo, juntando as mãozinhas como se estivesse fazendo um pedido oficial.

Natália sentiu o coração derreter.

— Claro que pode. Vamos passar no caixa, tá bom?

A menina assentiu com um "hum!" decidido, e entregou a borracha ao pai, que riu baixo.

— Acho que vou ter que levar, né? — ele brincou.

— É pa mim! — a pequena reforçou, batendo o pezinho de leve no chão.

Natália riu e conduziu os dois até o balcão. Enquanto registrava o produto, a garotinha encostou o rosto no balcão e ficou olhando fixamente.

— Moça… tei nome?

— Tenho. É Natália — respondeu, gentil.

A menina repetiu com toda dificuldade fofa de uma criança que ainda está descobrindo as sílabas:

— Na-tá-lia… táia!

Natália sorriu, sentindo uma ternura inesperada.

— E você? Qual é o seu nome?

A pequena abriu um sorriso enorme, mostrando quatro dentinhos minúsculos.

— Bebeca! — proclamou, orgulhosa.

— Rebeca? — Natália confirmou.

— É! Bebeca! — a menina bateu palminhas.

Após pagar, o pai agradeceu e segurou a mãozinha inquieta da filha.

— Vamos, mocinha. Dá tchau pra moça.

Rebeca acenou de maneira desengonçada, a borracha agarrada contra o peito como se fosse o objeto mais precioso do mundo.

— Tchau, Táia!

E saiu arrastando o pai, toda saltitante.

Natália ficou ali por alguns segundos, ainda sorrindo. Aquela pequena pausa de alegria tinha iluminado seu dia — e talvez ela nem tivesse percebido o quanto precisava daquilo.

Mas o seu dia mal tinha começado...

E enquanto organizava tudo, para finalizar o dia, ela sentiu uma sensação em seu peito, um leve aperto, quase um pressentimento de que logo sua vida mudaria.

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