Depois de deixar o prédio da audição, tudo o que Amara queria era descansar. Ao chegar em casa, mal tirou os sapatos antes de cair no sofá para uma soneca rápida — precisava recuperar o sono perdido, mesmo que só por algumas horas.
Ao acordar, sentiu-se revigorada e com fome. Decidiu ir até o supermercado. Comprou ingredientes frescos, acompanhamentos e até algumas latinhas de cerveja. Planejava preparar um ensopado picante, sua forma pessoal de celebrar a pequena vitória do dia: ter conseguido ir à audição.
Era simples, mas era dela. E comemorar sozinha já havia se tornado um hábito. Comer hot pot sozinha podia parecer triste para muitos, mas para Amara, já era uma velha companheira: a solidão.
Estava terminando de montar a mesa quando alguém bateu à porta. O som a fez congelar por um instante.
"Quem viria aqui a essa hora?", pensou.
Curiosa, e um pouco apreensiva, caminhou até a porta e a abriu — só para perder o fôlego com a cena que encontrou.
Pitter Riddel estava parado ali, vestindo um terno elegante e um casaco escuro por cima. Nos braços, carregava o pequeno Théo, que segurava uma cesta de frutas coloridas.
Por um instante, ela achou que estava sonhando.
— Sr. Pitter? — sua voz saiu trêmula. — O que faz aqui… tão tarde? Está tudo bem?
Ele a encarou com a mesma expressão calma de sempre e respondeu seco, como se fosse a coisa mais normal do mundo:
— Visita médica.
Visita médica? Ela piscou várias vezes, tentando entender. Um CEO famoso, visitando sua casa como um clínico geral, trazendo o filho no colo?
Confusa e envergonhada com a bagunça da casa, ela se apressou:
— Ah, claro... entre, por favor. Desculpe pela desordem.
Enquanto eles entravam, Amara tentava, sem muito sucesso, esconder a roupa amontoada no canto do sofá e jogava algumas coisas debaixo da cama. Seu rosto já estava corado de vergonha quando perguntou:
— Querem algo para beber? Chá verde? Leite?
— Claro — respondeu Pitter, com a frieza típica de quem dava ordens em reuniões de diretoria.
Théo se acomodou no sofá, pequeno e sério, como uma miniatura do pai. Os dois pareciam espelhos — quietos, impenetráveis e elegantemente fora de lugar naquele pequeno apartamento.
"O que será que eles estão fazendo aqui?", pensou novamente.
Amara preparou o chá e o leite, enquanto o aroma do ensopado começava a se espalhar, apimentado e acolhedor. Tentando aliviar o silêncio constrangedor, arriscou:
— Eu estava prestes a jantar... É só um hot pot. Querem se juntar a mim?
— Sim — respondeu Pitter, sem hesitar.
Théo apenas sorriu e assentiu com a cabeça, como se aquele convite fosse a coisa mais esperada do mundo.
Amara engoliu seco. Ela só tinha perguntado por educação, não achou que fossem aceitar. Não aqueles dois. Não o homem que comandava metade da cidade com seu sobrenome.
Mas ali estavam eles, sentando-se à mesa da cozinha dela, esperando os hashis com naturalidade.
— A base da sopa é bem picante... Vocês conseguem comer comida apimentada? — ela avisou, tentando ser gentil.
— Sim — Pitter respondeu novamente.
Théo, mais uma vez, balançou a cabeça com entusiasmo.
Amara colocou mais dois pares de hashis na mesa e se juntou a eles.
Pitter comeu pouco, mas comia como quem estava acostumado a dividir — atento a cada detalhe, ele servia Théo e até colocava ingredientes para ela. Théo, por outro lado, comia animadamente. Apesar da pimenta, sua língua de vez em quando escapava para fora, mas ele não parava.
Amara riu, preocupada.
— Isso não é forte demais para uma criança?
— Ele não é tão frágil assim — respondeu Pitter, impassível.
O silêncio voltou por alguns minutos, apenas o som suave dos ingredientes fervendo preencheu o ambiente.
Então, de repente, ele falou:
— E a audição? Como foi?
Amara, pega de surpresa, hesitou por um segundo. Depois sorriu, sincera:
— Correu tudo bem, sim. Por isso esse hot pot... é minha forma de comemorar.
Pitter ergueu sua bebida em um gesto breve, quase imperceptível.
— Parabéns.
Foi só uma palavra. Mas dita por ele, soou como um brinde silencioso — e, de alguma forma, caloroso.
Ali, naquela pequena mesa de jantar, com o ensopado borbulhante, três mundos completamente diferentes se cruzavam. E Amara, pela primeira vez em muito tempo, não se sentiu tão sozinha.
Amara nunca imaginou que o primeiro a parabenizá-la por sua audição seria justamente Pitter Riddel — o homem mais inacessível que já conhecera. Mas ali estava ele, em sua sala simples, erguendo uma xícara de chá com uma palavra breve, porém cheia de significado.
Ela sorriu, sentindo o calor subir pelo peito. Era um gesto pequeno, mas depois de tudo que enfrentara, aquela simplicidade teve um peso inesperado. Com o coração leve, Amara levantou sua caneca de cerveja em resposta, os olhos brilhando com gratidão.
— Obrigada! — disse com sinceridade, brindando ao momento.
O sorriso que ela deu a seguir foi tão espontâneo que fez Pitter estremecer por dentro. Mesmo com sua postura controlada e expressão impassível, algo dentro dele pareceu se abalar.
Amara então se virou para Théo, que a observava com olhos curiosos e atentos.
— E você, meu herói — ela disse, estendendo a mão com carinho —, esse brinde é especial pra você. Se não fosse sua ajuda, eu não teria conseguido chegar à audição a tempo. Muito obrigada, Théo.
O menino olhou para sua xícara de leite, depois para os adultos com suas bebidas "de verdade". Depois de um segundo de hesitação, ele ergueu sua xícara com solenidade e brindou com Amara, virando o leite num único gole, como se fosse um brinde cerimonial.
Amara riu, encantada com a maturidade fingida de Théo. Era difícil acreditar que aquele menino de olhar tão sério era apenas uma criança.
Quando a refeição terminou, Pitter se levantou para atender uma ligação na varanda. Amara aproveitou o momento e se inclinou em direção ao pequeno, com um olhar cúmplice.
— Ei... posso experimentar? Só um golinho do seu leite? Mas tem que ser rápido, antes que seu pai volte!
Théo abriu um sorriso e, como se estivesse conspirando com ela, ofereceu a xícara. Amara tomou um pequeno gole, fingindo que era algo proibido e delicioso. O gesto singelo aqueceu o coração de ambos.
Logo, Pitter voltou para a sala. Amara já estava em seu lugar, disfarçando com perfeição. Théo, tão sério quanto o pai, mantinha sua pose impecável, bebendo o restinho do leite como se nada tivesse acontecido.
Pitter, se notou algo, não demonstrou. Mas havia um leve brilho nos olhos dele, um calor discreto que não combinava com sua aparência fria.
A noite seguiu leve, e juntos terminaram todo o ensopado que Amara havia preparado. Ela se surpreendeu com o apetite de Théo, e até mesmo com a naturalidade de Pitter diante da comida caseira.
Quando Amara se preparava para se despedir, um clarão cortou o céu e, em seguida, um trovão forte ecoou sobre a capital. A chuva começou a cair de forma intensa, batendo contra as janelas como se quisesse entrar.
— A previsão dizia que a tempestade seria forte... — comentou Amara, olhando pela janela.
Ao se virar, percebeu os olhares de Théo e Pitter voltados para ela. Havia algo de... esperado neles. Como se estivessem apenas aguardando.
Ela hesitou, lutando entre a lógica e a educação, mas acabou cedendo ao impulso:
— Está muito perigoso pra voltar pra casa com esse temporal. Se quiserem... podem passar a noite aqui.
Era apenas um gesto de cortesia. Ou pelo menos, era o que ela queria acreditar. Ainda assim, não esperava a resposta imediata:
— Ok — disse Pitter.
Théo sorriu, os olhos brilhando de felicidade.
O quê? Amara mal conseguiu esconder o susto. Eles aceitaram tão rápido? Como se... já soubessem que isso aconteceria?
Ela soltou um suspiro, resignada com o rumo que a noite tomava.
— Certo... então vamos organizar os quartos. Tenho apenas um, e a sala. Posso dormir aqui fora, e vocês ficam com o quarto. Vou trocar os lençóis...
Mas Pitter logo cortou:
— Não. Eu durmo na sala. Você e Théo ficam com o quarto.
O tom dele era firme, inegociável.
Amara mordeu o lábio. Tinha tantas perguntas que preferia não fazer. Como sua vida havia mudado tanto em tão poucos dias?
Se fosse apenas Pitter, ela jamais teria feito o convite. Havia algo nele que a desestabilizava. Ainda mais depois daquele convite inusitado proposto no primeiro hospital da capital. Mas com Théo ali, tudo parecia diferente. Como dizer não àquele menino de olhos doces e coração sincero?
Suspirando outra vez, ela foi até o guarda-roupa e pegou algumas roupas limpas — peças simples, mas confortáveis.
— Aqui estão. Não é muito, mas... espero que sirvam.
Enquanto os dois aceitavam as roupas, um pensamento inesperado cruzou sua mente:
Como foi que cheguei até aqui?
No sofá da sua casa, um dos homens mais poderosos que ela já conheceu. No quarto, uma criança que havia se tornado um elo improvável entre seus mundos tão diferentes.
E ela... dividida entre o medo de se machucar e a estranha paz que sentia na presença deles.
Naquela noite, nada aconteceu como o planejado. Mas, no fundo, Amara sabia: era o começo de algo que ela ainda não conseguia nomear — mas já sentia.