Mundo de ficçãoIniciar sessão— O senhor William — murmurei, quase sem fôlego.
Beatriz parou por um instante. A expressão mudou: primeiro espanto, depois descrença, e enfim algo pior: o prazer frio de quem encontra o que queria para ferir. — O senhor William? — repetiu ela, saboreando cada sílaba, como quem gira uma faca entre os dedos. — Que interessante… — Um sorriso fino se formou em seus lábios. — E por que ele faria isso, me diga? — Deu um passo à frente, a sombra do corpo dela cobrindo parte da luz que vinha da janela. Eu recuei, apertando o livro contra o peito, como se pudesse me esconder atrás dele. — Diga, Honora… — sussurrou ela. — Por que um homem como ele daria algo tão caro a alguém como você? — A voz gotejava veneno. — Será que ele queria se divertir com a sua ingenuidade? Ou será que achou graça em ver você fingir que entende o que lê? Ela inclinou a cabeça, o olhar descendo até minhas mãos trêmulas sobre a capa do livro. — Aposto que você só passa os olhos pelas letras, sem compreender coisa alguma. Deve achar bonito o desenho das palavras… — um riso baixo escapou dela, abafado, cortante. — Você é tão estupida, tentando se parecer com gente letrada. O som do seu riso cruel ecoou pelo quarto. — Você acha mesmo que pode enganar a todos aqui? — sussurrou ela, o rosto tão perto do meu que senti o calor da respiração misturado ao perfume ácido que usava. — Um livro assim… — passou o dedo pela borda dourada da capa, lentamente, como quem toca uma ferida. — …vale mais do que seis meses do seu salário, Honora. Fez uma pausa longa, deixando o silêncio se encher de ameaça. — Então, me diga — continuou, a voz doce, mas impregnada de veneno —, o que foi que você fez para merecer isso? Ela deu um meio sorriso, os olhos brilhando de malícia. — Foi um presente inocente, é isso? Ou você encontrou outro jeito de conquistar o favor do jovem mestre? Senti o sangue sumir do meu rosto. — Ele tem o coração de pedra, minha cara. — O tom dela agora era frio, quase piedoso. — Se imagina que alguma gentileza dele significa algo… está se iludindo. Homens como ele não amam, apenas se distraem. Além do mais, se realmente não se deitou com ele, só há outra opção. A minha garganta me queimava. Cada palavra dela era uma agulha entrando sob a pele. Eu entendi claramente oque ela queria dizer. — Eu não roubei — consegui dizer, apressada, trêmula, antes mesmo de pensar. — Eu nunca… jamais faria isso. Ela arqueou uma sobrancelha, fingindo surpresa. — Então quer dizer que foi mesmo o senhor William quem lhe deu. Que história curiosa. Eu engoli em seco, as mãos ainda apertadas sobre o livro, e respondi, num sussurro rouco: — Eu não dormi com o senhor William, senhorita Beatriz. — As palavras saíram tropeçando, pesadas de vergonha. — Ele me presenteou, foi só isso. Ela inclinou o rosto, os lábios se curvando num sorriso torto. — Claro que sim. — As palavras escorreram como mel amargo. — Você apenas “ganhou” um presente de luxo de um jovem homem que sequer olha para o rosto das criadas. É isso? Engoli em seco. Quis responder, mas a garganta fechou. — Sabe o que vai acontecer quando o senhor Alistair souber disso? — perguntou ela, a voz agora baixa, perigosa. — Vai querer saber porque tem um livro tão caro, uma menina de cor que não ofereceu nada em troca para William para ter isso. Ele não aprova que William se deite com a criadagem, ainda mais alguém como você. — Ela olha minha pele de cima embaixo. — Com certeza ele vai querer saber o que mais você anda escondendo. O medo me atravessou inteira. O ar ficou espesso, difícil de respirar. Porque se ele desconfiasse de algo, se ao menos desconfiasse da minha mãe ou do nosso parentesco, tudo iria abaixo. — Por favor… — murmurei. — Não diga nada. Eu juro, Beatriz, eu não fiz nada de errado. Ele me deu porque… porque teve pena. Só isso. Ela deu um risinho curto. — Pena? — Deu outro passo. Agora estava tão perto que eu podia sentir o perfume barato misturado ao cheiro de ferro do sangue que me subia às têmporas. — Eu acho que o que ele sentiu foi curiosidade. Homens como ele adoram brincar com o que não lhes pertence. Senti o rosto arder, uma mistura de raiva e vergonha. Quis gritar, mas a voz morreu dentro de mim. — Você deveria se lembrar do seu lugar, Honora. — Ela falou devagar, cada palavra cortando como faca. — Livros não foram feitos para mãos como as suas. Aquela frase me atingiu como um tapa. Eu me encolhi, o livro ainda contra o peito, o coração descompassado. Ela observou minha reação com um olhar de quem aprecia o próprio poder. — Eu não sou sua inimiga — disse por fim, em tom doce, falso. — Mas eu não posso fingir que não vi. Se eu guardar esse segredo, é porque tenho um bom coração. — Por favor — supliquei. — Eu imploro. Não diga nada. Ela me fitou em silêncio por um momento, como se saboreasse o som da minha súplica. Depois, deu um passo atrás, ajeitou a saia e disse, calma: — Muito bem. — Deu um sorriso que não chegou aos olhos. — Seu segredo está seguro comigo. Mas o modo como ela disse aquilo — com aquela suavidade que escondia a lâmina — fez algo dentro de mim gelar. Ela virou-se, andando devagar até a porta. Antes de sair, lançou-me um último olhar. E então foi embora. Fiquei sozinha no quarto, o som dos passos dela ecoando pelo corredor. O livro pesava em meu colo como se tivesse se transformado em pedra. Por um instante, pensei em escondê-lo para sempre. queimá-lo, talvez. Mas minhas mãos o abriram de novo, involuntariamente, e os olhos correram pelas linhas como quem busca salvação, ainda que eu soubesse que se esse segredo fosse descoberto, a primeira a pagar o preço seria eu. ** Três dias depois, eu estava dobrando os lençóis da cama quando ouvi três batidas duras. Abri a porta devagar, o pano ainda preso entre meus dedos. Gregory estava ali, sério demais, a boca em uma linha rígida. — O senhor Alistair quer você no escritório — anunciou, sem rodeios. — Agora. Minhas mãos gelaram imediatamente. Eu agarrei o pano com mais força, como se aquilo pudesse me proteger. — Você… sabe por quê? — perguntei, tentando soar normal, mas minha voz vacilou. Gregory respirou fundo, como quem escolhe as palavras. — Não sei ao certo. Mas ele não parece… — ele desviou o olhar por um breve instante — …tranquilo. Melhor ir rápido. Meu estômago despencou. Enquanto caminhávamos pelo corredor, o silêncio parecia caminhar conosco. Só o som dos nossos passos existia. Quando dobramos a curva, avistei Clarissa ajoelhada no chão da despensa, esfregando o chão um balde de cobre ao se lado. Ela ergueu a cabeça, os olhos arregalando quando me viu acompanhada de Gregory. — Honora? — ela largou a escova no chão e se aproximou. — O que aconteceu? Estão falando pela casa… que há uma confusão com seu nome no escritório… que o senhor Alistair tá… — Eu não sei oque está acontecendo — disse, a minha voz tremia. Ela percebeu imediatamente. — Você tá branca… — Clarissa tocou meu braço. — O que houve? — Ela abaixa o tom para que só eu possa escutar. — É sobre… o livro? Será que á Beatriz… contou? — ela não diz essa última palavra, mas não importa. Ela empalideceu. Meu coração parou por um segundo. Clarissa era minha amiga, e a única pessoa além de Beatriz que sabia do livro.






