Mundo de ficçãoIniciar sessãoEle arqueou a sobrancelha, a surpresa misturada à ironia. — Você sabe ler? — disse, quase zombeteiro, como se fosse impossível.
— Sei — disse firme, tentando não tremer. — Minha mãe me ensinou, anos atrás. Queria que eu tivesse alguma utilidade. Ele cruzou os braços e, com um brilho divertido, murmurou: — Impressionante. Nunca imaginei que alguém como você tivesse educação. As meninas da casa mal sabem diferenciar joio de trigo. Olhei ao redor, para os milhares de volumes da biblioteca. — Mas aqui há livros aos montes. Você pode escolher qualquer um. — Não… não qualquer um — corrigi, sentindo meu rosto corar. — Eu queria Clarissa, de Samuel Richardson. Ele arqueou a sobrancelha e riu baixinho, irônico: — Romance, é? Que curioso para alguém como você. Ele se aproximou, inclinando-se, e com um gesto rápido e calculado, puxou um fio da minha trança, passando os dedos pelo cabelo crespo com atenção quase científica. Meu corpo estremeceu, o calor subiu e a timidez aumentou. — Huh… você é mais interessante do que pensei — disse, sério, mas com aquele toque de curiosidade que me fez corar. — Estranho, mas fascinante. Alguns segundos de silêncio se seguiram. Finalmente, com a voz baixa, perguntei, tímida: — Quantos anos você tem? Ele arqueou a sobrancelha, sarcástico: — Somos amigos agora? — Somos? — perguntei, surpresa. Ele riu, cruelmente divertido: — Claro que não. Eu jamais seria amigo de alguém como você. Senti o aperto no peito, humilhada, mas notei um lampejo de hesitação em seu olhar, como se tivesse se arrependido de algo. — É melhor você voltar — disse, ríspido, mas firme. — A criadagem deve estar te procurando. Antes de atravessar a porta, ele ergueu os ombros, meio sorriso surgindo: — Dezoito. E você? — Dezesseis — murmurei, olhando para as mãos no colo. O silêncio caiu novamente, carregado de tensão, curiosidade e reconhecimento contido. Eu sabia que ele continuaria provocador e hostil, mas também percebia algo novo: uma atenção calculada, observadora, que, por alguns instantes, me fez sentir que não estava totalmente sozinha na mansão. Passaram-se dias desde aquele encontro na biblioteca. Eu ainda lembrava do modo como ele me olhara, firme e hostil, o olhar carregado de algo que eu não conseguia decifrar, e da palavra curta que me obrigara a permanecer ali, mesmo tremendo de vergonha e timidez. Depois daquele dia, nunca mais havíamos falado. Raramente nos cruzávamos pelos corredores da mansão, mas, cada vez que isso acontecia, ele mantinha aquele semblante de raiva, quase como se eu fosse uma intrusa permanente em sua presença. A hostilidade dele parecia ter aumentado com o passar dos dias, e eu sabia que ele não queria amizade, nem eu desejava forçá-la. Mas ainda assim, eu tinha guardado aquela esperança ingênua de que ele poderia ser mais gentil, um pouco menos severo, pelo menos um gesto que mostrasse algum reconhecimento pelo que acontecera na biblioteca. Ouvi pelos criados que William se encontrava em período de treinamento para o Exército Britânico, algo que ele escolhera voluntariamente. Eles comentavam baixo, com um misto de respeito e fascínio, como se aquilo fosse perigoso e nobre ao mesmo tempo. Talvez fosse isso que explicava a distância entre nós: ele estava ocupado, disciplinado, e mesmo quando nos víamos, evitava qualquer contato. Mas eu continuava a observá-lo, tentando entender, tentando encontrar uma fresta de humanidade naquele rapaz severo e impiedoso. ** Eu estava no pátio interno, fazendo um pequeno favor para Clarissa, varrendo folhas. O frio mordia minhas mãos, e o lenço na cabeça mal segurava o vento. Foi quando o Senhor Alistair surgiu no alto da escadaria, os olhos estreitados. Carregava uma taça de vinho na mão e parecia incomodado por eu estar ali. Como sempre. — Você, — ele disse, apontando o dedo ossudo na minha direção. — Limpe o estábulo. Agora. Senti o estômago embrulhar. O estábulo ficava do outro lado do terreno, e estava cheio de lama, fezes e feno apodrecido. Não era trabalho para para mim Jesus, desde que cheguei aqui eu estava tão magra que mal tinha forças para levantar um balde. — Mas senhor, ela… — Elizabeth começou, surgindo ao lado dele. Estava pálida. — Ela não pode… Alistair virou o rosto para ela tão rápido que a taça quase caiu de sua mão. O tom meio embriagado. — Está me desafiando agora, Elizabeth? — Ela ainda pode estar doente. Teve febre essa semana. Mal se recuperou. — Então que morra no estábulo, — ele rosnou. E antes que pudesse reagir, a mão dele voou no ar. Um estalo seco ecoou nas pedras quando o tapa atingiu o rosto de Elizabeth. Ela caiu para o lado, ofegante, o rosto virado, os cabelos soltos em desalinho. Por um instante, tudo congelou. Até William, que vinha descendo as escadas, parou. Seus olhos se arregalaram, e algo neles mudou. Ele olhou para mim, depois para o pai, e então para Elizabeth caída ao chão. Seus punhos se fecharam ao lado do corpo. Por um momento, juro que pensei que ele fosse dizer algo. Mas ele não disse. Alistair cuspiu no chão e virou-se de volta para dentro da casa. Como se nada tivesse acontecido. Corri até minha mãe. Quis segurá-la, perguntar se doía, mas ela me afastou com um gesto brusco. — Não me toque empregada! — minha mãe disse com os olhos marejados. — Vai para o estábulo. Faça o que ele mandou. A dor que senti no meu peito foi pior do que qualquer tapa. Caminhei até o estábulo com as pernas bambas, e trabalhei ali por horas. Meu corpo tremia de frio e medo. A cada garfada de palha molhada, eu me perguntava se alguém viria me tirar dali. Mas ninguém veio. Até a noite cair. Na manhã seguinte, acordei com dor nos braços e nos pés. Mas algo me chamou atenção ao lado do colchão de palha onde eu dormia: um embrulho. Pequeno, rústico, envolto em um pano de linho amarrado com barbante. Olhei ao redor, desconfiada. Ninguém em casa me daria nada. Não depois do que aconteceu. Desamarrei o tecido com dedos trêmulos. Era um livro. Meu coração disparou antes mesmo que meus olhos pudessem absorver o título: Clarissa, de Samuel Richardson. Não havia bilhete, nenhuma pista além do próprio livro. Mas eu sabia, imediatamente, que era dele. O jeito como o livro estava cuidadosamente posicionado, o cuidado quase clínico com que fora deixado, o simples fato de ele ter lembrado exatamente daquele título… não restavam dúvidas: William havia me deixado aquele presente. Sentei-me na cama, sentindo minhas mãos tremerem, e peguei o livro com delicadeza. Era quase como segurar algo vivo, algo que continha uma promessa silenciosa de atenção, mesmo que ele jamais tivesse dito uma palavra desde aquele dia na biblioteca. Nos dias que se seguiram, o livro se tornou meu refúgio. Eu andava com ele de um lado para outro, sempre temendo que alguém pudesse percebê-lo e questionar sua presença. Afinal de contas, alguém como eu não deveria saber ler, e ainda mais ter um livro caro como aquele. Eu lia cada página com cuidado, devorando as palavras que descreviam paixões proibidas, traições e amores impossíveis, tudo enquanto meu coração se apertava de uma maneira que eu ainda não sabia nomear. Mas naquela tarde cinzenta, o refúgio se quebrou. O vento soprava forte lá fora, empurrando as cortinas finas contra o vidro. Eu estava sentada na cama estreita, o livro aberto sobre o colo, os olhos mergulhados nas palavras quando a porta se escancarou de repente. O som foi como um estalo de chicote. Meu corpo inteiro se enrijeceu. O livro quase caiu das minhas mãos. — O que é isso? — A voz de Beatriz cortou o ar, aguda, seca, como uma navalha. Ergui o olhar, e lá estava ela, parada à porta, o rosto duro, os braços cruzados. Os olhos claros varreram o quarto até pousarem sobre o livro. Bastou um segundo para que o ar ficasse pesado. Eu até tentei esconde-lo, mas era inútil, ela já havia o visto. — Isso — ela apontou com o queixo, um meio sorriso no canto dos lábios — é seu? Meu coração começou a bater alto, tão alto que me pareceu que ela podia ouvir. Tentei responder, mas a voz me fugiu. — Eu perguntei de onde veio isso, Honora. — Ela deu um passo para dentro. As botas tocaram o assoalho com um som firme, de quem não tem pressa em ferir. — Isso não é coisa de criadagem…Você por acaso sabe ler? — Poderia ser uma simples pergunta, mas carregava hostilidade em cada palavra. — Eu sei ler. — Digo baixo, — Foi… foi um presente — consegui dizer, num fio de voz. Ela arqueou as sobrancelhas, fingindo surpresa. — Presente? — A palavra saiu lenta, enrolada no veneno do riso. — Ora, e quem, em nome de Deus, daria um presente desses a você? Senti o calor subir ao rosto. As mãos suavam. Eu sabia que não devia responder, mas também sabia que o silêncio me condenava.






