O que diachos está acontecendo? — perguntei, perplexa, ao me deparar com uma cena que parecia ter saltado das páginas de um conto de fadas distorcido.
Uma senhora de semblante duro, carregando a altivez de quem se julga acima do mundo, observava com desdém. Ao seu lado, uma jovem trajando roupas berrantes e de gosto duvidoso maltratava uma criada. Esta, de olhos castanhos ligeiramente úmidos e cabelos loiros presos às pressas com um lenço puído, usava um vestido desbotado, quase em farrapos. Ainda assim, havia algo de sereno em sua figura. A dignidade irradiava de sua postura ereta e dos gestos contidos. Mesmo sob o desgaste da roupa, seu corpo estava limpo, e os pés calçavam sapatos simples, mas firmes e inteiros, destoando do restante da indumentária.
— Sua lerda! Ainda por cima deixou derramar! — bradou a senhora, a voz cortante como chicote, enquanto o rosto ruborizava de raiva.
— Me desculpe, senhora. Vou limpar imediatamente. — respondeu a criada, tremendo ao se curvar, desaparecendo por um instante numa correria em busca de um pano.
Só então percebi algo ainda mais estranho: o peso de um vestido em mim. Olhei para baixo — babados rosados, bordados minuciosos, cetim escorrendo em ondas. Toquei os cabelos — macios, perfumados, meticulosamente cacheados. Meus lábios ardiam levemente sob o peso de um batom espesso.
Pessoas à minha frente me fitavam com inquietação, como se eu houvesse enlouquecido.
— O que aconteceu comigo?! — exclamei, sem conseguir conter o pânico.
As duas mulheres se viraram de uma vez, como se eu tivesse gritado em outro idioma.
— O que deu em você, Patrícia? Está falando coisas sem sentido? — indagou a moça de roupas espalhafatosas, enrugando o nariz, visivelmente incomodada com minha estranheza.
Patrícia? Meu coração bateu mais forte. As peças começaram a se encaixar: o livro que eu lia no ônibus na noite anterior... o clarão súbito... o despertar neste lugar que cheirava a lavanda e cera de móveis antigos.
— Não pode ser... — sussurrei, trêmula. Em passos ansiosos, cruzei o salão adornado por tapeçarias luxuosas e móveis de madeira escura até me ver diante de um espelho alto de moldura dourada.
O reflexo que me fitava tinha algo meu — mas era outra. Cachos castanhos caíam como ondas bem moldadas até os ombros; olhos verdes de um tom que jamais me pertencera brilhavam em um rosto pálido, quase translúcido. A pele era fina, imaculada. O vestido, embora digno de um baile de gala, parecia exagerado, como se eu estivesse presa em um teatro sem roteiro.
Belisquei a bochecha com força. A dor veio imediata.
— Eu morri e reencarnei na história do livro... — murmurei, o frio da constatação descendo pela minha espinha.
A senhora tornou a falar, com menos impaciência e mais curiosidade:
— Patrícia, você está pálida como um lençol. Suba para seu quarto, menina. Vou chamar um médico.
— Deve ser isso mesmo... — disse, encenando um mal-estar. — Sinto como se o meu corpo estivesse ardendo por dentro...
"Preciso fingir normalidade. Se acharem que estou louca, posso acabar trancada num asilo."
Assenti, deixando as palavras presas na garganta. Meu corpo se movia sozinho, como guiado por uma memória que não era minha, até alcançar a escadaria coberta por um tapete espesso e silencioso. Subi, cada degrau rangeu sob meus pés. Ao chegar ao corredor, virei à esquerda e parei diante de uma porta familiar — o terceiro quarto. Como eu sabia disso?
Empurrei a porta.
O ambiente era refinado, o ar impregnado por um perfume doce e sutil — talvez lavanda com um toque de baunilha. Cortinas de veludo bloqueavam o sol do fim da tarde, deixando o cômodo mergulhado numa penumbra dourada. Afundei-me na cama de dossel, encostei o rosto em um travesseiro de penas tão macio que quase me engolia, e finalmente chorei.
Como isso aconteceu? O que eu faço agora? Como volto para minha vida?
O pânico formigava sob minha pele como fogo. Estava presa na pele de uma personagem — e não de qualquer uma. Patrícia, que eu sabia ter um destino amargo, envolto em traições e um fim trágico.
Enquanto isso, no andar de baixo, Lady Eleonor e Elisa trocavam olhares carregados de desconfiança.
— O que deu na minha irmã? Ela está louca? — murmurou Elisa, girando o dedo perto da têmpora.
— Está muito estranha mesmo... Catarina, o que você ainda faz aí? Vá buscar o cocheiro. Patrícia precisa de um médico. — ordenou Lady Eleonor, ríspida.
— Sim, tia. Agora mesmo. — respondeu Catarina, ainda surpresa, mas apressando o passo.
Do lado de fora, a luz da tarde aquecia o jardim, tingindo o céu com tons de cobre e violeta. Catarina ajoelhou-se ao lado do cachorro e acariciou as orelhas dele.
— Sabe, Bruno, foi estranho o jeito como a Patrícia me defendeu hoje... Parecia até outra pessoa. — disse, pensativa, enquanto os olhos acompanhavam o vento brincando com as folhas.
Mais tarde, quando o médico chegou, o som das rodas da charrete sobre o cascalho anunciou sua presença. Ele desceu com calma, ajeitando o chapéu.
— Como tem passado, minha jovem? — perguntou Hernan, com sua voz baixa e gentil.
— Estou bem, obrigada por perguntar — disse Catarina, oferecendo um sorriso cansado, mas sincero.
Ele a observou com atenção.
— É admirável como você permanece tão forte, mesmo sob tanto esforço. Está com uma aparência saudável.
Catarina agradeceu com um aceno de cabeça, mas sua mente ainda voltava, teimosa, ao olhar estranho de Patrícia. Algo ali tinha mudado.
Deitada naquela cama, senti o toque macio dos lençóis contra minha pele e o perfume suave de lavanda que impregnava o quarto. A luz trêmula das velas lançava sombras delicadas nas paredes, tornando tudo ainda mais surreal. Minha mente, porém, estava longe dali. Longe daquele corpo que agora ocupava.
Meu nome era Lúcia. Ou será que ainda era?
Fechei os olhos e senti o cheiro da terra molhada das manhãs em Minas Gerais, as tardes preguiçosas embaladas pelo aroma doce do café recém-coado. Mas esse passado parecia se dissolver no ar pesado do quarto luxuoso onde me encontrava.
Aos 23 anos, troquei a segurança de minha cidade natal pela imensidão impessoal de São Paulo. Trabalhei sem descanso, limpando corredores de prédios reluzentes, enquanto a cidade pulsava ao meu redor como um organismo vivo, indiferente à minha existência. No hostel apertado onde morei, conheci Paula, que me indicou para um emprego de serviços gerais. Mesmo sendo desastrada, arrancava risadas dos colegas, mas enfrentava o olhar sempre crítico de Renata, minha supervisora, que parecia se alimentar dos meus tropeços.
Dois anos se passaram. Com esforço e economia, juntei dez mil reais, mas, aos 25, sentia que minha vida havia sido pequena. Sem grandes conquistas, sem amores inesquecíveis.
Agora, me via ali, entre lençóis de linho bordado, em um mundo que não era o meu.