Entre dois mundos cap 2

Deitada naquela cama, senti o toque macio dos lençóis contra minha pele e o perfume suave de lavanda que impregnava o quarto. A luz trêmula das velas lançava sombras delicadas nas paredes, tornando tudo ainda mais surreal. Minha mente, porém, estava longe dali. Longe daquele corpo que agora ocupava.

Meu nome era Lúcia. Ou será que ainda era?

— Eu morri mesmo? — minha voz saiu num sussurro rouco, quase inaudível. — “Minha vida foi tão pequena... Não fiz nada de importante, minhas irmãs mais velhas construíram família, e viviam confortavelmente fui para a cidade grande e não consegui muito dinheiro, nem um namorado.”

A lembrança de Renato, um colega de trabalho, emergiu como um sussurro no vento. Seu sorriso caloroso, a maneira como me olhava quando o ajudei com um relatório complicado... Era um lampejo de felicidade em uma rotina sem cores.

— "É inacreditável. Aquele dia tinha sido tão bom... E agora nunca mais o verei e nem a minha família." — pensei, e uma onda de tristeza apertou meu peito.

As lágrimas brotaram antes que eu pudesse contê-las, e logo senti o gosto salgado escorrendo pelos lábios.

— Patrícia, o médico está aqui para vê-la — anunciou uma voz familiar ao abrir a porta.

Meu coração gelou. Eu conhecia aquela voz... Mas não era de Maria, minha mãe.

Era de Lady Eleonor .

A lembrança de outra vida invadiu minha mente com a força de uma tempestade. Eu sabia quem era aquela mulher. Minha mãe... não. A senhora Eleonor.

O doutor Hernan entrou, um homem de cabelos grisalhos e olhar sereno. Seu perfume discreto misturava-se ao aroma amadeirado do quarto. Ele sorriu de forma paciente, como se estivesse acostumado a lidar com minhas birras.

— Como vai, Patrícia? O que está sentindo?

Antes que eu pudesse responder, a voz fria de Lady Eleonor cortou o ar como uma lâmina afiada.

— Olhe para ela, doutor! Os olhos estão vermelhos como fogo

— "Claro que estão... Chorar sem controle tem esse efeito." — Refleti, sentindo o peso do olhar impaciente dela sobre mim.

O médico manteve-se calmo.

— Fique tranquila, Lady Eleonor. Peça que alguém traga um chá de gengibre enquanto faço o exame.

Ela saiu sem dizer mais nada, e eu permaneci fitando Hernan, minha mente girando entre memórias que eram minhas e não eram.

— Faz tempo que não te vejo tão quieta — ele comentou, inclinando-se para me examinar. — Sempre resmunga quando venho.

Seu tom era brincalhão, um resquício de um afeto antigo.

— Eu sei que sou levada, mas estou amadurecendo. Daqui a dois meses farei 18 anos. — Sorri, tentando dissipar a angústia.

— Isso é uma mudança e tanto — ele disse, impressionado. — Agora, mostre a língua, por favor.

O exame foi rápido, e quando Lady Eleonor voltou, ele garantiu que era apenas um resfriado leve e recomendou descanso.

Foi então que Catarina entrou com o chá. O aroma quente e picante do gengibre subiu no ar, misturando-se com a doçura do mel. Colocou a bandeja ao lado da cama e me olhou com surpresa quando agradeci.

Talvez fosse estranho para ela. Eu nunca a tratava com gentileza.

— "Outra vez, uma reação diferente." — pensou Catarina ao se retirar.

Enquanto bebia o chá, o calor descendo suavemente pela garganta, observei o quarto ao meu redor. Luxuoso, mas frio. Paredes de um dourado opaco, pesadas cortinas de veludo, o som da chuva fraca contra o vidro.

Eu não era mais Lúcia.

A noite chegou, e com ela o desejo de um banho quente. A água morna envolveu meu corpo, trazendo uma sensação de conforto que contrastava com a confusão em minha mente. O perfume suave de rosas do sabonete se misturava ao vapor denso, e por um momento, deixei-me relaxar.

— "Mesmo como Lúcia, sempre gostei de cuidar da pele, usar bons produtos. Patrícia não é diferente... Só que exagerada." — refleti, esfregando os braços devagar.

Mas a tranquilidade durou pouco.

— Patrícia! — A voz impaciente de Elisa soou do outro lado da porta, acompanhada de batidas firmes. — Quanto tempo mais vai demorar?

Suspirei, deixando a água escorrer pelo rosto antes de responder.

Eu estava, definitivamente, presa dentro dessa nova vida.

— Até que enfim, Patrícia! Do jeito que demora, a água vai esfriar antes que eu tenha minha vez! — reclamou Elisa, sua voz atravessando a porta como um trovão.

A umidade do vapor ainda pairava ao meu redor quando abri a porta, o ar quente escapando para o corredor frio. Segurei o roupão mais firme contra o corpo, sentindo o tecido macio colar levemente na minha pele úmida.

— Não seja tão chata! Eu mal entrei na água! — rebati, soltando um suspiro exasperado.

Elisa bufou e empurrou a porta com impaciência, o aroma intenso de seu óleo corporal se espalhando no ar.

— Não me interessa. Quero tomar banho rápido, a noite está gelada. — disse, apertando o roupão contra si antes de desaparecer para dentro do banheiro.

Engoli a irritação e segui para o meu quarto. Elisa sempre gostou de arrumar encrenca. Eu mesma costumava ser assim, eu não seria mais a garota impulsiva de antes, até porque sei o final da história.

Ao chegar no quarto, a gata da família estava perto da porta. Era branca, com olhos azuis.

— Que linda! Venha comigo, gracinha — a peguei e levei para o quarto.

Depois de me vestir com uma camisola rosa, dei uma fita para a gata brincar e me sentei na cama.

— Agora que tenho memórias de toda uma vida, me sinto como se realmente fosse Patrícia... que até ontem mexia com Catarina, sua prima, junto com a mãe e a irmã — pensei, ao concluir.

— Na história, Catarina conhece Ivan Valdequio, que se apaixona por ela e se casam. Ao saber dos maus-tratos cometidos contra a noiva, ele manda matar todas — falei, recapitulando.

— "Não quero morrer uma segunda vez. Irei mudar o rumo dessa história." — pensei, decidida.

Na manhã seguinte, peguei o vestido roxo que comprara dias antes. O tecido era bonito, mas faltava algo. Peguei uma tesoura e, com cortes cuidadosos, retirei os excessos. O som do tecido sendo rasgado encheu o silêncio do quarto.

Satisfeita, sentei-me diante do espelho. Passei os dedos sobre um creme hidratante frio e o espalhei pelo rosto, sentindo a textura sedosa contra a pele. Peguei o pó e o apliquei com leveza, seguido por um toque de batom escuro. O penteado veio em seguida: prendi os cabelos, deixando alguns cachos soltos para emoldurar o rosto.

Inclinei a cabeça, analisando o resultado sob a luz trêmula.

— Até que ficou bom...! — murmurei, um leve sorriso dançando nos lábios.

O momento de admiração durou pouco. A porta foi aberta bruscamente, e Elisa entrou com seu típico ar de superioridade.

— O que foi agora? Veio pedir alguma coisa emprestada? — perguntei, cruzando os braços.

— Você pegou meu colar de pérolas? Não estou achando. — O olhar acusador dela faiscou na minha direção.

— Não está comigo. Procure na bagunça que é o seu quarto. — retruquei com frieza.

Elisa apertou os punhos, as unhas bem cuidadas afundando levemente na seda de sua roupa. Quando seu olhar pousou em mim, ela estreitou os olhos.

— O que você fez com o seu vestido?

— Decidi mudar. Ficou muito melhor assim. — respondi com naturalidade, embora, em minha mente, pensasse: Credo, nosso gosto sempre foi horrível!

O desgosto no rosto dela foi quase cômico.

— Vou contar para mamãe. Vamos ver o que ela acha disso. — anunciou, carregando na voz um misto de deboche e ameaça.

Dei de ombros.

— Faça o que quiser. Acha que estou preocupada?

Poucos minutos depois, o grito de nossa mãe ecoou pelo corredor:

— Patrícia Venha aqui agora!

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