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Capítulo 3 - Quando a tinta seca

Os dias seguintes pareceram se arrastar em um compasso estranho — nem lentos, nem rápidos demais, apenas vazios.

Com a Coleção Prisma concluída, não havia mais nada urgente a fazer.

Mesmo assim, Helena não conseguia se desligar por completo.

Cada peça daquela coleção era como um fragmento de si mesma, e deixá-la seguir o curso sem vê-la nascer seria como abandonar um filho no meio do caminho.

Então, decidiu ir até o Grupo Ferreira, empresa subsidiária do Studio Cassiani e responsável pela produção dos protótipos dos móveis.

Não era a primeira vez que ia até lá, mas, ultimamente, Cássio evitava que ela participasse de qualquer etapa fora do escritório em casa.

"Deixe essa parte técnica para os engenheiros, amor”, dizia sempre com um sorriso doce demais para não demonstrar controle.

Mas Helena não se importava mais com as proibições veladas.

Ao chegar na empresa, passou pela recepção e esperou o elevador.

Vestia-se com simplicidade elegante: uma calça de linho bege, camisa branca e o cabelo preso de forma displicente.

Ainda assim, havia nela algo magnético — uma presença tranquila, quase serena, mas firme o bastante para preencher o ambiente.

O som do ping anunciou a chegada — e, quando as portas se abriram, Helena sentiu o chão sumir sob seus pés.

Diante dela estavam Cássio e Renato Ferreira, o CEO do grupo e melhor amigo de seu marido.

O olhar de Cássio endureceu instantaneamente.

Vê-la ali, naquele ambiente, parecia para ele uma afronta, como se ela quisesse revelar seu papel real nos projetos do Studio.

— Está fazendo o que aqui, Helena? — perguntou, com o tom seco de quem fala com uma intrusa.

Renato, curioso, ergueu as sobrancelhas. Não costumava ver Helena nas dependências da empresa.

Helena sustentou o olhar dele e respondeu, tranquila:

— Vim acompanhar a produção dos protótipos da nova coleção.

Renato soltou um riso baixo, carregado de desdém. Para ele, Helena era apenas a esposa entediada do amigo — uma mulher bonita, fútil e sem propósito. Essa era a imagem que Cássio sempre cultivara para ele.

— E o que você entende disso?

A pergunta veio como uma bofetada, mas Helena manteve a compostura.

Antes que ela pudesse responder, Cássio se apressou em intervir com ar de ironia:

— Helena, se está com tempo livre ou entediada, por que não vai fazer umas compras?

Ela arqueou uma sobrancelha, surpresa com a ousadia dele.

Cássio conhecia bem o quanto ela era o oposto de uma mulher fútil.

Mas fingir que ela era uma esposa ociosa parecia lhe dar algum tipo de poder.

Renato riu, divertido com a provocação:

— Se estiver sem companhia para suas aventuras com o cartão de crédito do Cássio, posso pedir à Tânia pra te fazer esse favor.

Fez uma pausa e acrescentou, provocador:

— Embora, pensando bem, hoje ela e a Viviane foram para um spa. Posso te passar o endereço, se quiser se juntar a elas.

Tânia era esposa de Renato, e Viviane, a irmã caçula de Cássio. Unidas por uma amizade antiga, compartilhavam também um sentimento silencioso — a antipatia por Helena, que jamais tentaram disfarçar.

O ar ficou pesado, denso.

Helena lançou um olhar calmo, quase sereno, para Cássio, esperando que ele pusesse fim àquele circo.

Mas ele permaneceu em silêncio, imóvel, cúmplice do deboche.

A dor que subiu pelo peito dela não foi de humilhação, mas de constatação.

Ali estava, diante de todos, o retrato perfeito de quem ele se tornara.

Nesse instante, uma voz conhecida ecoou pelo hall.

— Sra. Helena! Que bom vê-la aqui! — Manoel, o gerente de produção, aproximava-se com um sorriso genuíno. — Eu queria justamente tirar umas dúvidas sobre algumas peças da nova coleção. Ficou incrível, por sinal. Meus parabéns!

Renato franziu o cenho.

— Dúvidas? Com a senhora Helena? _ Olhou para Cássio, confuso. — E o que ela saberia pra te ajudar, Manoel?

O gerente o fitou, incrédulo, sem entender se era ironia ou ignorância genuína.

Era difícil acreditar que o próprio CEO desconhecesse o talento da mulher que praticamente idealizava cada detalhe dos projetos.

Helena nunca havia dito a Manoel que ela era a responsável por trás de tudo, mas o entendimento completo dela sobre todo o processo, cada etapa e cada detalhe lhe conferiam essa certeza.

Antes que ele pudesse responder, Cássio interveio, visivelmente nervoso:

— Helena, é melhor você ir embora. Estamos tentando trabalhar aqui, e eu não tenho tempo para suas tentativas de chamar atenção.

O silêncio que se seguiu cortou o ar como vidro quebrando.

Por um segundo, até Renato pareceu desconfortável.

Helena permaneceu imóvel, observando o marido.

Aquele homem diante dela era um estranho — frio, mesquinho, preso à própria máscara.

O coração dela apertou, mas o rosto não denunciou nada.

Ela respirou fundo, e um sorriso breve, quase imperceptível, tocou seus lábios.

— Me desculpe — disse por fim, em voz mansa, sem ironia. — Você tem razão. Vou deixá-los trabalhar.

Ao virar-se para o elevador, cruzou novamente o olhar de Manoel, que lhe respondeu com um gesto cúmplice, um olhar silencioso de respeito — e talvez de pena.

Enquanto saia, Helena sentiu seu estômago se contrair.

O orgulho ferido pulsava como uma ferida aberta, mas por baixo da dor havia algo novo – uma serenidade estranha, quase libertadora.

Tudo estava à mostra agora — a verdade inteira, nua, sem adornos.

E, pela primeira vez, ela se sentia livre do peso de precisar provar algo.

Após a saída de Helena, Manoel ainda estava atônito.

Mesmo assim, precisava seguir com as dúvidas sobre o projeto. Virou-se para Cássio:

— Já que o senhor está aqui, poderia esclarecer alguns pontos para que eu continue a produção dos protótipos?

Cássio assentiu com falsa tranquilidade.

— Claro. Vamos até a sala de reuniões.

Manoel espalhou as folhas sobre a mesa.

Apontou detalhes técnicos, medições, escolhas de materiais, encaixes e acabamentos.

Mas Cássio hesitava, desconversava, tropeçava nas respostas.

Seus olhos percorriam os papéis como se lesse algo em idioma desconhecido.

Era evidente: ele não sabia explicar detalhes que apenas a mente criadora poderia conhecer.

O silêncio se alongou.

Até Renato, sentado à cabeceira, começou a perceber o desconforto do amigo.

Por fim, limitou-se a dizer:

— Estou muito atarefado hoje, Manoel. Deixe as perguntas comigo — mais tarde eu te envio as respostas.

Pegou as folhas, guardou-as na pasta com pressa e saiu, deixando o gerente sozinho e perplexo.

No fundo, Manoel já sabia: a verdadeira mente por trás daquela coleção não estava ali. E, talvez, naquele momento, o mundo começasse a perceber o mesmo.

Helena já havia deixado o prédio.

O reflexo no vidro espelhado da fachada devolvia-lhe uma imagem que há muito não reconhecia: uma mulher firme, altiva, de olhar sereno.

Por dentro, o coração ainda doía - mas algo novo começava a pulsar.

Ela não queria voltar para casa - não ainda. Então decidiu almoçar em um restaurante a uma quadra de distância.

O lugar possuía um deque de madeira ao ar livre, onde as mesas ficavam espalhadas com certa privacidade, cercadas por grades de metal torneado e sombrites discretos que filtravam a luz do sol. Um refúgio delicado em meio à movimentação da rua.

Escolheu um canto reservado e pediu uma refeição leve.

Saboreava um suco de frutas, apreciando a calmaria recém-descoberta dentro de si, tão contrastante com a agitação que a cercava.

Há muito não se permitia momentos assim, simples e silenciosos.

No primeiro ano de casamento, Cássio até havia sido gentil. Frequentavam restaurantes juntos, faziam pequenas viagens — experiências breves, porém memoráveis. Mas isso durou pouco.

Para ele, ela precisava criar cada vez mais, e, assim, Helena foi se vendo presa, enredada na ambição silenciosa dele, enquanto suas próprias cores eram deixadas de lado.

Uma presença abrupta a tirou de seus devaneios. Esther Amaral, sua sogra, cercada por algumas amigas, aproximou-se com um sorriso calculado.

— Veja se não é minha norinha se divertindo. — Disse com uma pitada exagerada de deboche.

Com o cabelo Chanel tingido de ruivo e um tailleur em tweed vermelho e brando, chamativo demais, Esther exibia a opulência que conquistara ao longo dos anos e um gosto que não disfarçava suas origens humildes.

Quando Helena a conheceu, Esther era simples, gentil e acolhedora, mas, com o tempo, fora envenenada pelas palavras do próprio filho.

Cássio nunca contou nem aos pais que era Helena quem criava os designers da empresa, até pra eles a pintou como a dona de casa desinteressada, fútil e supérflua.

E não hesitava em insinuar cansaço diante dos supostos defeitos de Helena, como se ela existisse apenas para gastar seu dinheiro e drenar a essência de sua vida.

Helena observava a sogra, sentindo um misto de ironia e desprezo. Era patético tudo aquilo! Era por meio do trabalho dela que Cássio podia dar à mãe uma casa confortável e uma mesada generosa todos os meses.

O que ela não conseguia entender era como todos podiam acreditar nas palavras de Cássio, quando jamais a viram ostentando roupas de grife, frequentando salões renomados ou restaurantes luxuosos.

Ela vivia de forma simples, discreta, sem alarde.

Esther, por outro lado, aproveitava cada luxo com naturalidade.

Helena não podia deixar de se perguntar: "o que aquela senhora faria se conhecesse a verdadeira face de seu filhinho querido?"

Esther, que coincidência te encontrar aqui! — disse Helena, com um sorriso contido, que não alcançava os olhos, mas carregava firmeza.

Helena, querida... sempre tão… discreta, não é? — respondeu Esther, erguendo a sobrancelha com um ar de superioridade. Vejo que você continua aproveitando os pequenos luxos proporcionados por meu filho.

Helena manteve o sorriso, desta vez ligeiramente mais frio, quase uma linha reta de desafio.

Luxos? Estou aqui porque quis um momento de tranquilidade. Digamos que seja um luxo que decidi me permitir.

Esther deu uma risadinha, cheia de deboche.

Ah, sempre tão… modesta. Pena que não dá pra dizer o mesmo do entusiasmo com as contas do Cássio, não é mesmo?

Helena inclinou-se levemente para frente, os olhos firmes nos da sogra, deixando transparecer a confiança que não tinha há anos.

Na verdade, Esther, aprendi a lidar com meu próprio dinheiro. Posso garantir que o que é meu, é meu. E não preciso de aprovação de ninguém para isso.

Esther se afastou um passo, surpresa com a firmeza inesperada na voz de Helena. Algumas amigas lançaram olhares curiosos, percebendo que a mulher à frente delas não era a mesma que haviam imaginado.

Interessante… — disse Esther, sem conseguir disfarçar uma ponta de irritação. — Vejo que os anos mudaram você. Ou talvez só revelaram quem você realmente é.

Helena respirou fundo, mantendo a compostura, como quem segura um vulcão prestes a explodir.

— Talvez. Mas, de qualquer forma, não estou mais interessada em provar nada a ninguém.

Um silêncio caiu sobre a mesa. Helena terminou de beber o suco, levantou-se calmamente e juntou a bolsa. — Aproveite seu almoço, Esther. Eu já aproveitei o meu.

E, com passos firmes, dirigiu-se à saída deixando uma Esther para trás, visivelmente furiosa, e fervendo sob os olhares de suas amigas.

Antes mesmo de Helena atravessar a porta de casa, o telefone tocou. Era Cássio. Assim que atendeu, a explosão veio:

— Como você pode destratar a minha mãe, ainda mais em público? — rugiu ele. — Você está passando do ridículo, Helena! Já não bastava ter aparecido no Grupo Ferreira mais cedo… o que você quer? Está tão desesperada que precisa me envergonhar?

Helena permaneceu em silêncio.

— Agora você fica quieta? — continuou ele, a irritação aumentando.

— Eu sempre fiquei quieta, o tempo todo! Não sei nem do que você está me acusando! — respondeu ela, firme, mas controlando a raiva.

— Não se faça de sonsa! Meus pais vão organizar um jantar hoje, e é melhor você comparecer e pedir desculpas à minha mãe. Senão… pode dar adeus a esse casamento! — gritou Cássio, desligando o telefone antes que Helena tivesse chance de reagir.

Pouco depois, outra mensagem chegou em seu celular:

“Vou direto da empresa, então você terá que ir sozinha.”

Então era isso. Eles tentavam humilhá-la, e, ainda assim, era ela quem tinha que se desculpar...

Cada palavra, cada ordem imposta, soava como um desafio silencioso que, antes, a teria feito recuar.

Mas ela iria. Não por submissão, mas por curiosidade.

Queria ver qual seria a cena teatral da vez, observar de perto o jogo de aparências que Cássio e seus pais tanto valorizavam.

A diferença agora era clara: Helena não se deixaria mais atingir.

O silêncio interno se transformava em uma armadura invisível, cada passo seu carregando a firmeza de alguém que havia decidido não se dobrar diante de provocações.

Ela respirou fundo, sentindo a determinação pulsar como um fogo contido. Iriam presenciar a mesma mulher de antes? Não. Agora encontrariam alguém que conhecia seu próprio valor e que, finalmente, entendia que o poder de cada gesto estava inteiramente em suas mãos.

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