Capítulo 8: Manoela Ferraz

Acordei com a luz fraca do dia atravessando as frestas da persiana torta. A claridade esbranquiçada da manhã de Londres não trazia calor algum, só um lembrete de que o mundo continuava girando... mesmo quando tudo dentro de mim parecia estagnado.

Virei devagar na cama, espreguiçando os músculos doloridos. Meu corpo gritava por mais descanso, mas a realidade não me dava esse luxo. O colchão afundava embaixo de mim, e a ausência ao lado, no espaço onde Roger deveria estar, era tão constante que já não doía. Só era.

Levantei com calma, pegando a manta fina que havia jogado aos pés da cama durante a madrugada, e enrolei no corpo para abafar o frio que subia do chão. Os chinelos estavam gelados, mas caminhei até a cozinha assim mesmo, pisando leve para não me lembrar do silêncio opressor que tomava conta do apartamento.

Liguei a chaleira. Peguei a caneca lascada com estampa de limão que ganhei de uma amiga na faculdade. Ainda havia um restinho de pão dormido. Passei margarina e coloquei na sanduicheira, tentando fingir que aquilo bastava.

Enquanto esperava, notei o maço de envelopes sobre a mesa.

Contas.

As mesmas de sempre. Luz. Gás. O aluguel que estava atrasado. A conta da farmácia. Uma carta do hospital. Suspirei e puxei as faturas para perto, folheando uma por uma. O papel era frio, mas o que me gelava de verdade era a soma invisível no canto da mente — aquele número que crescia e que eu nunca conseguiria alcançar sozinha.

Terminei o café em silêncio e lavei a caneca com movimentos lentos. Evitava pensar, mas meu reflexo no vidro da janela me lembrava: o rosto mais magro, os olhos cansados, e a pequena curva crescendo sob a camiseta de algodão.

Tinha passado da hora de procurar acompanhamento médico.

Peguei o celular e disquei o número do postinho do bairro. O sinal falhava em algumas áreas do apartamento, mas fiquei andando de um lado pro outro até conseguir ouvir o toque de chamada.

— Unidade de Saúde Comunitária, bom dia — atendeu uma voz monótona.

— Oi… bom dia. Eu… eu queria agendar uma consulta de pré-natal — falei, um pouco mais baixo do que pretendia.

— Qual a idade gestacional?

— Estou de… mais ou menos nove semanas. Talvez dez.

— Nome completo? Data de nascimento?

Respondi tudo, esperando ser cortada. Mas, para minha surpresa, a atendente disse que havia uma vaga em dois dias, com a enfermeira obstetra da unidade.

— Traga documento, comprovante de endereço e, se tiver, o cartão do NHS — ela completou, antes de desligar.

Guardei o celular no bolso com a sensação de ter dado um passo importante — ainda que pequeno. A sensação durou pouco.

O barulho da chave girando na porta me fez congelar.

Roger.

Ele entrou cambaleando, a camisa manchada de bebida, o jeans sujo, os olhos vermelhos e fundos. O cheiro de álcool misturado a cigarro invadiu o ambiente como uma nuvem tóxica.

Fechei os olhos por um segundo antes de me virar para ele.

— Bom dia — murmurei, tentando manter a voz neutra.

Ele largou a mochila no chão com um baque e jogou as chaves em cima da mesa com violência desnecessária.

— Tá vendo café aí? — perguntou, sem me encarar.

— Eu acabei de fazer. Tem na chaleira.

Ele não respondeu. Foi até o armário, pegou uma caneca qualquer e serviu o líquido preto com mãos trêmulas. Depois se sentou na ponta da cadeira, como se o mundo o devesse alguma coisa.

— Onde você passou a noite? — perguntei, antes que pudesse me conter.

Ele virou os olhos para mim, devagar. Aqueles olhos que, meses atrás, já foram gentis. Agora… só traziam cansaço. E desprezo.

— Trabalhando. Ou você acha que o dinheiro aparece como? Hein, Manoela?

Trabalhando. A desculpa de sempre. Mesmo quando o hálito dele dizia outra coisa. Mesmo quando ele voltava com a roupa amarrotada e a alma desfeita.

— Eu marquei a consulta — murmurei, voltando os olhos para a pia. — No postinho. Começo o pré-natal essa semana.

Silêncio.

Ele deu um gole no café, depois soltou um riso seco.

— Ótimo. Vai lá dizer que tem um marido ausente e ingrato, né?

Trinquei o maxilar, mas não respondi. Não valia a pena discutir. Não com ele naquele estado.

— E vê se começa a fazer mais por aqui também — ele continuou, a voz ficando mais alta. — Essa casa não se limpa sozinha. Eu chego e ainda tenho que olhar pra essa bagunça? Quer criar filho desse jeito?

A casa estava limpa. Eu sabia. Mas ele não via. Nunca via.

Apenas assenti e continuei esfregando a pia, só para ter as mãos ocupadas. Ele não encostou em mim, não hoje. Mas só o tom de voz já era o suficiente para deixar minha pele arrepiada de alerta.

Quando ele terminou o café, levantou sem dizer mais nada e foi direto para o quarto, largando a caneca sobre a mesa. Ouvi o som da porta batendo. E então, silêncio de novo.

Voltei para a cadeira da cozinha, com o corpo murchando sobre ela.

Os olhos foram parar de novo nas contas. As mãos voltaram para a barriga. Acariciei com cuidado, como se aquela pequena vida precisasse ouvir que eu estava aqui. Que eu aguentaria mais um pouco. Por nós.

Porque fugir… ainda não era uma opção.

Respirei fundo e me levantei. Peguei minha bolsa, amarrei o cabelo com o elástico frouxo que estava no pulso e vesti o casaco puído que me acompanhava desde o Brasil. Olhei mais uma vez para o quarto — Roger deitado de costas para mim, como se a presença dele ocupasse o lugar que um dia foi espaço de cuidado. Agora, era só mais um canto escuro da minha rotina.

Fechei a porta do apartamento devagar, sem fazer barulho. Desci as escadas antigas com passos lentos, desviando do lixo acumulado no canto do corredor, e senti o ar frio bater no rosto como um tapa desperto. O céu de Londres estava cinza como sempre, mas hoje parecia mais pesado do que o normal.

No ponto de ônibus, abracei a mim mesma.

Ninguém olhava. Ninguém se importava. Era só mais uma garota de avental simples e olhos cansados indo para mais um turno mal pago.

Quando o ônibus chegou, entrei e sentei na janela, no fundo, onde sempre ia. Onde podia me esconder.

E foi só quando o motor começou a vibrar sob meus pés e os prédios começaram a passar devagar lá fora que as lágrimas caíram.

Silenciosas.

Quentes.

Doídas.

Chorei baixinho, com a testa encostada no vidro gelado, tentando conter o soluço que ameaçava escapar.

Porque era isso. Porque essa era minha vida agora.

Grávida. Sozinha. Invisível.

Mas, no fundo, uma pequena parte de mim… ainda resistia.

Por ela. Ou por ele.

Pelo bebê que crescia dentro de mim e merecia um mundo muito melhor do que esse.

Fechei os olhos por um instante.

E deixei que as lágrimas corressem, sem me envergonhar.

Porque chorar, às vezes, era a única forma que eu tinha de continuar.

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