Capítulo 7: Manoela Ferraz

O cheiro do café, que antes era quase terapêutico para mim, agora se tornou um gatilho.

Amargo.

Quente demais.

Pesado demais.

Ele ainda estava lá. Sentado à mesa próxima da janela, com aquele mesmo ar de poder silencioso, como se nada o abalasse. Mas eu sabia. Eu vi nos olhos dele. A dúvida. O impacto. A pergunta que gritou no fundo do silêncio entre nós.

Ravi me olhou como se tivesse acabado de ver um fantasma.

E, de certo modo, era isso mesmo que eu era: uma lembrança mal resolvida que ele nunca esperou rever. Ainda mais assim.

Grávida.

Passei o restante do turno flutuando entre as mesas, com o coração martelando no peito e as mãos frias demais para segurarem as xícaras com segurança. Tentei manter a cabeça erguida, os ombros retos, o sorriso mecânico que os clientes esperavam. Mas por dentro… eu estava desmoronando.

E ele me olhava.

Eu sentia. Mesmo quando não ousava levantar os olhos.

Ravi desviava o olhar dos sócios para mim, como se buscasse confirmação para o que já suspeitava. A curva discreta sob o avental. A tensão no meu corpo. O tremor nas minhas mãos.

Senti como se estivesse nua diante dele.

Como se ele pudesse enxergar tudo — até o que eu passei nos últimos meses.

Os pratos pareciam mais pesados. As bandejas escorregavam entre meus dedos. O barulho dos talheres, das conversas e risadas ao redor, me ensurdecia. E a única coisa que eu conseguia pensar era: ele sabe. Ou pelo menos… ele viu o suficiente para desconfiar.

Quando ele finalmente se levantou e saiu com os colegas, o ar ao meu redor pareceu voltar a circular. Como se eu tivesse ficado prendendo a respiração por horas.

Mas o alívio não durou.

No instante em que a porta fechou atrás dele, uma onda de exaustão e angústia me invadiu. Um nó na garganta se formou e minhas pernas ameaçaram ceder.

— Tá tudo bem, Manu? — perguntou Lily, com os olhos gentis e a testa franzida.

— É só o calor... e o sono — respondi com um sorriso que doía manter. — Nada demais.

Ela assentiu, talvez acostumada demais com o cansaço de todos nós. Não insistiu. E eu agradeci em silêncio.

Terminei de limpar as mesas, guardei os últimos pratos, arrumei os talheres. Tudo em modo automático. Queria desaparecer, ir para casa e me esconder embaixo das cobertas. Mas nem isso eu podia ter. Porque casa, ultimamente, não era sinônimo de paz.

Me despedi dos colegas com um aceno rápido e saí do café, apertando o casaco contra o corpo. A noite em Londres estava fria, com aquela garoa fina que parecia dançar no ar antes de pousar nos ombros. Umidade demais. Esperança de menos.

O ônibus demorou mais do que o normal. Sentei no banco de plástico duro, com as mãos sobre a barriga — um gesto que se tornara inconsciente nos últimos meses. Às vezes, era minha forma de me lembrar que eu não estava completamente sozinha. Outras vezes, era a forma mais silenciosa de pedir desculpas.

Porque eu não fazia ideia do que estava fazendo. E ele — ou ela — merecia mais do que isso.

A viagem até o bairro onde moro levou quase uma hora. Aos poucos, os prédios altos e vitrines iluminadas deram lugar a esquinas escuras, ruas estreitas e fachadas desgastadas. Quando desci, a rua estava vazia. Uma única lâmpada do poste tremia no ritmo da ventania.

Subi os dois lances de escada com esforço, segurando o corrimão para não perder o equilíbrio. O peso da barriga, ainda pequeno, parecia dobrar com o cansaço e o nervosismo acumulado do dia.

O prédio era velho, úmido e cheio de silêncios pesados.

Abri a porta do apartamento e entrei. Escuro. Silencioso. Frio.

Ele não estava em casa. De novo.

Por um lado, era um alívio. Por outro… era mais solidão.

A sala minúscula tinha uma poltrona gasta, um sofá com rasgos e uma televisão que só funcionava quando queria. A cozinha americana era apertada, com azulejos antigos e rachados. Havia louça na pia e um cheiro leve de gordura no ar.

Comecei a limpar, não porque queria, mas porque era o que eu fazia quando o mundo dentro da minha cabeça estava barulhento demais. As mãos ocupadas me impediam de chorar. O som da água, do prato batendo na pia, era uma distração do eco que deixei dentro do café.

Ele me viu.

Ele viu.

Limpei o chão. Recolhi as roupas jogadas. Passei um pano nas superfícies. Liguei a água quente do chuveiro, mas ela caiu morna demais. E ainda assim, me forcei a tomar um banho rápido. Precisava tirar o cheiro de café da pele. E o cheiro de lembrança.

Vesti uma camisola velha e fui até a cozinha. Havia pouco na geladeira. Meio pacote de arroz, um ovo, uma maçã quase passada. Peguei a maçã e parti ao meio, guardando a outra metade. Comi em silêncio, sentada na ponta da cama, ouvindo os ruídos do andar de cima. Pessoas que riam, conversavam, viviam.

Eu só... resistia.

Depois de tudo limpo, arrumado, e ainda sem sinal dele, sentei na beirada da cama. Os olhos ardiam. O corpo pedia descanso, mas a mente... não desligava.

Apoiei a mão na barriga.

Ainda pequena. Ainda imperceptível sob roupas largas. Mas tão real. Tão minha.

E agora, talvez... não só minha.

— Eu tô tentando... — sussurrei, engolindo em seco. — Tô fazendo o melhor que posso. Mesmo quando parece que tudo tá desmoronando.

Fechei os olhos, deixando uma lágrima escorrer.

Lembrei do olhar de Ravi. Do jeito que ele me viu. Não como antes. Não com desejo ou curiosidade. Mas com algo mais profundo. Como se... ele já soubesse. Como se o choque fosse apenas a confirmação do que sentia desde a primeira vez que nossos olhos se cruzaram naquela tarde.

E agora?

O que ele vai fazer?

O que eu vou fazer?

Respirei fundo e acariciei lentamente o ventre. A única certeza que eu tinha era essa vida que crescia dentro de mim. E por ela, eu precisava continuar.

Mesmo que tudo doesse.

Mesmo que tudo parecesse impossível.

Eu precisava continuar.

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