Mas, quanto mais elas falavam, algo naquela movimentação começou a me incomodar. Algo em mim mesma, um certo entusiasmo contido, que não combinava com os votos de castidade e humildade que eu havia feito.
Ainda assim, eu segui para a ala onde o evento estava sendo montado. Minhas mãos sabiam o que fazer — organizar a mesa de doações, supervisionar os quitutes que seriam servidos, revisar a lista de convidados e oradores. Perder-se nessas tarefas era, para mim, uma forma de me ancorar. Trabalhar evita pensar. Principalmente em coisas indevidas. O salão da Basílica foi decorado com simplicidade, mas elegância. Havia arranjos florais discretos, velas perfumadas e uma mesa com quitutes típicos — tortas pequenas, pães artesanais, frutas frescas e sucos naturais. Os funcionários se movimentavam com precisão, todos conscientes de que o evento era patrocinado por uma das famílias mais influentes da região: a minha. Quando meus pais chegaram, o impacto foi imediato. Meu pai, Luiz Antônio Barreto de Mendonça, era um homem de presença. Austero, alto, sempre vestido de forma impecável. Tinha o olhar de quem sabia o peso que carregava — o nome da nossa família, o papel dentro da Igreja, a honra a ser preservada. Minha mãe, Dona Carmem, era a imagem perfeita da dama religiosa e contida. Sempre muito educada, discreta, com os cabelos castanhos presos num coque impecável e a voz mansa que raramente se elevava. Mas por trás daquela aparência serena, havia um olhar apagado, ferido por dores que talvez eu nunca compreendesse por completo. Ela não era mais a mulher que me criou — ou pelo menos, não como eu lembrava. A vida tinha sido cruel com ela. todos os acontecimentos com a minha irmã acabaram de quebrá-la. Desde então, ela passava a maior parte dos dias dopada de remédios, vagando pelos cômodos com passos leves e ausentes, como se procurasse uma versão dela mesma que já não existia. Ainda havia fé nos lábios dela, mas era uma fé cansada, de quem aprendeu a aceitar o silêncio como resposta. — Laura. — meu pai disse, estendendo a mão, como se cumprimentasse uma colega de trabalho. Eu correspondi com um beijo no rosto e um sorriso contido. — Está tudo indo bem? — Ele olhou de soslaio para toda sua volta observando todo o evento. — Sim, pai. Todos os preparativos foram concluídos. — Esperamos que sim. A presença de vocês aqui é um reflexo direto do nosso nome. Era sempre assim. Eu sentia que era mais uma vitrine do que uma filha. Um retrato daquilo que meu pai gostaria de exibir: pureza, devoção, disciplina. E um corpo que, se dependesse dele, seria moldado como porcelana. Caminhei um pouco com eles até a mesa, onde um dos voluntários oferecia doces em bandejas pequenas. Distraída, peguei uma dessas porções — um bolinho delicado, com açúcar por cima e um cheiro suave de limão. Não planejava comer ali, na frente de todos. Mas o gesto foi automático. E, assim que dei a primeira mordida, ouvi a voz do meu pai atrás de mim, baixa, mas cortante como sempre: — Às vezes, os pequenos excessos dizem muito sobre o que não conseguimos controlar, Laura. Fiquei com o bolinho parado na boca, o sabor antes leve e doce agora se transformando em algo pesado, amargo. O guardanapo que eu segurava tremia um pouco, mas disfarcei. Engoli devagar, sentindo o coração acelerar como se tivesse cometido um pecado imperdoável. A vergonha era maior do que qualquer prazer que aquele pedaço de bolo pudesse ter me dado. Antes que eu pudesse responder — ou reagir — meus olhos foram puxados por uma figura ao fundo do salão. Ele estava ali. Não precisei que ninguém o apresentasse. Eu soube, na mesma hora, que era ele. O homem que o arcebispo mencionara. Padre Andrei Iliescu. Alto, expressão serena, olhos claros demais para serem ignorados. A batina preta bem alinhada contrastava com a leve sombra da barba por fazer — quase imperceptível, mas suficiente para dar-lhe uma humanidade desconcertante. Ao lado do arcebispo, ele caminhava lentamente na minha direção, atento às palavras que lhe eram ditas. Mas antes que chegasse perto, eu notei algo. Ele olhou para mim. Não foi um olhar qualquer. Foi um olhar preciso, direto, como se tivesse escutado o comentário do meu pai. Como se tivesse percebido a tensão no ar. Seus olhos não carregavam julgamento, mas havia uma pergunta neles. Uma pausa. Um silêncio que me atravessou inteira. Desviei o olhar antes de entender o que aquilo queria dizer. E, pela primeira vez em muito tempo, senti que não era eu quem estava observando o mundo — mas o mundo que estava me observando de volta. Virei-me devagar, encarando meu pai, minha mãe, a mesa de doces; encaro qualquer direção, menos na direção do padre novato. De alguma maneira bizarra, olhar para a presença dele tão onipotente pareceu um pouco errado. Até que eu ouvi a voz do arcebispo atrás de mim: — Laura, — disse ele com aquele tom sempre afável. — Este é o Padre Andrei Iliescu, recém-chegado da Romênia. Veio colaborar conosco nas próximas semanas. Eu já estava de frente para ele quando nossos olhos se encontraram. E mesmo assim, senti como se o chão tivesse mudado de lugar sob meus pés. Padre Andrei não era como os outros homens que costumavam passar por ali. Não era como ninguém que eu já tivesse visto, na verdade. Alto, de semblante sóbrio, a pele Laura contrastava com os traços fortes e marcados. Os olhos eram frios como aço, e ainda assim, havia neles uma intensidade silenciosa. Eu não sabia explicar por quê, mas senti um desconforto estranho, um incômodo que era quase físico. Uma sensação de que ele via mais do que deveria. — É um prazer, Irmã Laura — ele disse com um leve aceno, a voz carregando um sotaque firme e gentil ao mesmo tempo. Respondi com um gesto contido, lutando contra a vontade involuntária de recuar um passo. A presença dele era… demais. Não de forma indevida. Mas pesada. Marcante. Como se o ar tivesse ficado mais espesso ao redor de mim. Não era a primeira vez que eu via um padre bonito — mas nunca assim. Nunca alguém que parecesse tão deslocado do mundo e, ainda assim, incrivelmente presente. — Ele ficará conosco por algumas semanas — disse o arcebispo, com orgulho. — Vai nos ajudar com os projetos sociais, especialmente com os jovens em situação de vulnerabilidade. Tem uma experiência admirável, mesmo sendo tão novo. “Tão novo”, repeti em pensamento, tentando não fixar os olhos nele. Mas era difícil. Não por vaidade. Nem por desejo — não, eu não era esse tipo de mulher. Não mais. Mas havia algo naquele homem que instigava. Como um ímã, ou um lembrete de tudo que eu me proibia sentir. Me repreendi em silêncio. O coração ainda acelerado, como se eu tivesse cometido uma infração só por perceber demais. Logo, mais pessoas se aproximaram, e a conversa se dispersou em cumprimentos formais e palavras corteses. O salão estava lindamente decorado, com luzes suaves e música clássica ao fundo. Era o tipo de noite que minha mãe chamaria de “abençoada”. — O jantar estava maravilhoso — comentou o arcebispo, sorrindo largo. — De fato — respondeu minha mãe, elegante no vestido vinho. — Aquele arroz com amêndoas estava divino.