Aquilo me pegou desprevenida. Não era comum um visitante pedir isso logo no primeiro dia. E embora os arquivos estivessem sob os cuidados da Madre Superiora, era um pedido que eu precisaria repassar.
— Posso falar com a madre sobre isso, — respondi. Meu peito foi invadido por uma sensação incômoda — Mas… posso perguntar o motivo do interesse? Ele sorriu — não o sorriso social da noite anterior, mas algo mais frio, controlado. — História. Sempre gostei de entender o passado de um lugar. Diz muito sobre o presente. Pensei em perguntar mais, mas algo em mim recuou. Ele era um convidado importante, e eu não tinha razões reais para duvidar da intenção dele — pelo menos, nenhuma que pudesse explicar com lógica. Enquanto voltávamos para o corredor principal, me dei conta de que ainda não tinha respirado fundo desde que entramos ali. Era como se estivesse em constante estado de alerta, mas não sabia ao certo do quê. Minha fé sempre foi minha fortaleza. Era nela que eu repousava quando o mundo parecia hostil. Mas naquela manhã, diante daquele homem estranho, com dedos machucados e olhos que pareciam enxergar o que eu me esforçava para esconder, minha fé vacilou. Apenas por um segundo. E ainda assim… foi o suficiente para me deixar inquieta pelo resto do dia. A inquietação se manteve firme ao longo do dia, como uma leve febre que não me impedia de seguir com as obrigações, mas também não me deixava esquecer que algo estava fora de ordem. Era como um arrepio constante na espinha, uma lembrança incômoda de que meu mundo, cuidadosamente moldado em rituais e certezas, havia sido tocado por algo estranho. Ou por alguém. Tentei convencer a mim mesma de que era apenas a presença de uma figura nova e importante na Basílica. Era natural sentir certo nervosismo, certo deslocamento. Mas no fundo, eu sabia. O problema não era o título dele. Era ele. O homem em si. Padre Andrei. Ele não parecia se esforçar para ser notado — muito pelo contrário. Mas havia algo em sua presença que era impossível de ignorar. Seus olhos cinzentos pareciam atravessar as paredes da alma. E cada vez que eu pensava neles, uma pontada de vergonha me atravessava. Como se, ao lembrar dos olhos de um padre, eu estivesse cometendo um pecado silencioso, íntimo e imperdoável. E talvez estivesse. Minha fé sempre foi meu refúgio, meu norte. Cresci entre orações e silêncios, entre doutrinas e confissões. Mas agora, diante de um estranho que parecia carregar o mundo nas costas — e um passado que ninguém ali conhecia —, eu me via questionando pensamentos que deveriam ser impensáveis. No fim da tarde, enquanto levava alguns documentos para a sala de arquivo secundária — uma área menos usada, mas ainda assim parte da administração da Basílica —, o som de passos no corredor me fez parar. Quando me virei, lá estava ele. Padre Andrei vinha na direção oposta, saindo da biblioteca, com as mãos atrás das costas e uma expressão tranquila, quase despretensiosa. Mas seus olhos, sempre eles, me prenderam no lugar. — Laura — disse, com um leve sorriso que não chegava a tocar os olhos. — Que coincidência. Meu coração acelerou, e tive que fazer um esforço para não parecer desconcertada. — Padre Andrei — respondi com um leve aceno de cabeça, tentando manter a postura. — Boa tarde. — Eu ia justamente procurar você. — Ele parou a poucos passos de mim. — Sobre os arquivos que mencionei ontem… Você conseguiu a autorização? Minha garganta secou. A verdade era que eu não havia tido tempo nem coragem de pedir formalmente. Estava ocupada demais tentando entender minha própria reação à presença dele. Ainda assim, não queria decepcioná-lo. — Ainda não — confessei, olhando brevemente para o chão antes de encará-lo de novo. — Mas… se quiser, posso lhe mostrar a sala onde ficam os documentos. Só não poderei abrir nenhum sem a permissão adequada. Ele inclinou levemente a cabeça, pensativo. Parecia considerar a oferta com mais interesse do que deveria. — Entendo. Mas ver onde estão já me ajuda bastante — disse. — A localização, o tipo de organização… tudo isso é útil. Senti um nó no estômago. Ele não estava pedindo nada demais, e ainda assim, havia algo errado. Ou talvez o erro estivesse em mim. Eu era a anfitriã. Era meu dever conduzi-lo. E, ainda assim, me sentia como se estivesse cometendo uma pequena transgressão ao sequer levá-lo até ali. Assenti em silêncio e comecei a andar, sentindo os passos dele ecoando atrás dos meus pelos corredores de pedra. O som era ritmado, firme. Como se cada passo dele fosse calculado. Ao virar a esquina para o setor administrativo antigo, murmurei: — Não é um lugar muito visitado. A maioria dos documentos lá são bem antigos… registros de batismos, óbitos, doações… — Arquivos mortos — ele comentou, quase como se falasse consigo mesmo. — Alguns, sim. Outros ainda têm valor histórico. Há livros contábeis desde o século XIX — acrescentei, numa tentativa de manter a conversa em território seguro. Ele não respondeu de imediato, apenas continuou andando ao meu lado. — Está procurando algo específico? — perguntei, a fim de afastar o desconforto e também pela curiosidade que começava a crescer em mim. — Quero dizer… dentro dos arquivos? Ele pareceu refletir por um instante, antes de responder: — Nada específico. Fui instruído a conhecer melhor a história da Basílica. Os arquivos antigos costumam revelar mais do que as aparências mostram. Foi uma resposta vaga. E me pareceu decorada. Mas ele não parecia mentir — pelo menos não da maneira comum. Era mais como se estivesse omitindo partes de uma verdade muito maior, da qual eu não fazia ideia. Ainda assim, assenti, engolindo minha desconfiança. Eu não tinha o direito de questioná-lo. Paramos diante da porta da sala de arquivos. — É aqui — anunciei, pegando as chaves do molho preso ao cinto do meu hábito. — Eu posso abrir para o senhor, mas como disse, os documentos devem permanecer fechados até que a autorização chegue. — Eu compreendo — respondeu ele com um aceno cordial. — Apenas quero ver como está organizado. Não tocarei em nada.