Dante A luz atravessava as janelas altas da sala de jantar com uma delicadeza irritante — aquele tipo de manhã que parecia querer me lembrar que o mundo continuava, mesmo quando o resto se enrolava. Eu estava sentado à mesa, o jornal aberto diante de mim, mas os olhos presos no relógio pendurado na parede. O ponteiro avançava preguiçosamente, e Evelyn ainda não tinha descido.
Regra número um: horário para as refeições. Eu havia sido claro na noite anterior.
A xícara de café já esfriava na minha mão quando suspirei e a deixei de lado. Era a primeira manhã dela na mansão, e já havia decidido testar meus limites. Não me surpreendia. A maioria das pessoas parecia ter uma resistência natural à disciplina — mas, para mim, era o que mantinha o mundo em ordem. Meu pai sempre dizia que sem regras, até o luxo vira desordem. E ele estava certo.
Esperei mais cinco minutos. Depois, cansei. Tomei o café sozinho, observando o vapor desaparecer como um lembrete de que a paciência também evapora com o tempo.
— Sra. Collins — chamei, quando terminei.
Ela apareceu com o uniforme impecável e aquele olhar maternal que usava desde que eu era criança.
— Sim, Dante?
— Avise à Evelyn que os horários aqui são fixos. O café é às sete. O almoço ao meio-dia. O jantar às dezenove. — Fiz uma pausa. — Peça que ela procure respeitar isso.
A sra. Collins assentiu, embora o olhar dela deixasse claro que achava graça da situação.
— Vou avisá-la, sim. Mas lembre-se, Dante, que ela passou anos em um internato. As rotinas de lá talvez fossem diferentes.
— Diferentes não — respondi, pegando o paletó sobre a cadeira. — Lá também havia regras. Acredito que ela as cumpria sem problemas.
Antes que ela dissesse algo, ouvi passos no andar de cima. O som leve, ritmado, de quem descia sem pressa. Olhei para o relógio — sete e quarenta e três.
Quando Evelyn apareceu no topo da escada, por um momento, esqueci o motivo da irritação. O cabelo estava solto, bagunçado, com mechas que refletiam a luz da manhã. Vestia algo simples, mas nela tudo ganhava uma elegância natural. Parecia viva demais para aquela casa. E bonita demais para um problema.
Ela me viu e parou no meio da escada, franzindo o cenho.
— Bom dia — disse, com a voz ainda sonolenta.
— Bom dia — respondi, controlando o tom. — Dormiu bem?
— Sim. Muito bem, aliás. — Ela bocejou, cobrindo a boca com uma das mãos. — Só não sabia que precisava acordar com as galinhas.
A ironia me fez fechar o jornal.
— Os horários aqui são fixos, Evelyn. O café é às sete. Sempre. Se nós dois fizermos as refeições em horários diferentes, daremos mais trabalho aos funcionários da cozinha.
Ela riu baixo, quase zombando.
— Nem no internato eu acordava tão cedo.
Cruzei os braços.
— Pois agora não está mais no orfanato. Está em uma casa que só funciona, e é segura, se todos seguirem regras.
Ela inclinou a cabeça, com aquele olhar provocador que parecia medir minhas reações.
— Então talvez você devesse me colocar em um colégio militar. Aparentemente, eu preciso de treinamento.
Por um segundo, tive vontade de responder algo à altura. Mas mordi a língua, soltei um suspiro demorado e vesti o paletó.
— Tente apenas se adaptar — disse, tentando soar neutro, mas a irritação escapou no tom.
Ela abriu um sorriso curto, quase vitorioso.
— Tentarei.
Não respondi. Peguei a pasta sobre o aparador e caminhei até a porta. Cada passo parecia ecoar mais do que devia.
Do lado de fora, o ar frio da manhã me atingiu, e respirei fundo, tentando afastar o incômodo. A convivência com ela não seria simples — e eu, que acreditava ter tudo sob controle, começava a duvidar disso.
Dentro da casa, deixei para trás o som distante da voz de Evelyn falando com a sra. Collins. Parecia rir de algo. Talvez de mim.
***
O escritório parecia menor naquele dia. As paredes, antes imponentes, agora me cercavam como um lembrete do peso que eu carregava desde o funeral. Havia uma mesa comprida, cercada de homens em ternos caros e expressões sérias, e eu, no centro, tentando parecer presente.
Falavam sobre números, projeções, contratos. A sucessão estava em andamento e eu deveria estar concentrado — deveria estar pensando em estratégias, investimentos, decisões. Mas minha mente não estava ali. Estava nela.
Evelyn.
O rosto ainda sonolento, o cabelo despenteado, os olhos que pareciam rir do meu controle. Não havia nada de comum naquela garota. Ela era... sagaz demais, desobediente demais, e talvez por isso perigosa demais.
Peguei a caneta e comecei a girá-la entre os dedos, sem realmente ouvir o que o diretor de operações dizia sobre a nova fusão. Só percebi que ele havia parado de falar quando o silêncio me fez erguer o olhar.
— Sr. Harrington? — ele disse, incerto.
— Continue. — Minha voz saiu fria, mecânica, o tom que costumava usar quando precisava recuperar o controle.
Mas não consegui ouvir o resto. O pensamento voltava a ela, como uma maldição.
Eu precisava resolver isso. Precisava pôr minha cabeça em ordem antes que começasse a enxergar beleza onde não devia. Evelyn era minha responsabilidade, não uma mulher que eu poderia desejar. Era um limite claro, moral, quase sagrado. Mas meu pai havia me treinado a vida inteira para não ignorar problemas — e o que eu sentia, ainda que embrionário, era um problema.
No meio da tarde, quando a reunião terminou, eu decidi agir do único jeito que sabia: racionalmente.
Peguei o telefone e disquei o número de Katherine. Alguém com quem eu saía às vezes. Nada sério, sem compromisso. Era mais fácil assim.
A voz dela veio leve, rouca, familiar.
— Dante? Que surpresa. Achei que você estava de luto.
— Estou — respondi, apoiando o cotovelo na mesa. — Mas o luto não precisa durar o dia inteiro. Está livre hoje à noite?
Ela riu.
— Gostaria, mas tenho um evento. Amanhã, talvez?
Franzi o cenho, decepcionado.
— Amanhã, então.
— Não suma, querido — ela provocou antes de desligar.
Fiquei ali, olhando para o celular por alguns segundos. Katherine sempre foi prática — como eu. Não havia promessas, não havia cobrança. Era um acordo silencioso de duas pessoas que se encontravam apenas para aliviar o peso da vida. Mas, mesmo assim, me incomodou que ela não pudesse. Eu não queria ficar sozinho. Sozinho, eu pensava. E, pensando, eu voltava para ela. Evelyn.
O dia seguiu arrastado. Passei o resto da tarde resolvendo pendências, conversando com o departamento jurídico, assinando mais papéis do que qualquer ser humano deveria. Quando Henry chegou, perto do fim do expediente, foi quase um alívio.
Ele entrou no escritório com o ar despreocupado. Sentou-se diante de mim, pousando a pasta sobre os joelhos.
— E então — começou — como estão as coisas com Evelyn?
Soltei um riso breve.
— Peculiar. É o mínimo que posso dizer.
Henry arqueou uma sobrancelha.
— Peculiar como?
— Ela tem um talento natural para contrariar. Avisei que a casa tem regras simples — horários, principalmente — e que todos devem segui-las. A garota resolveu testar logo no primeiro dia. Acordou tarde, perdeu o café da manhã e ainda debochou quando mencionei isso.
Henry escutava sem interrupções, apenas com aquele olhar de advogado paciente.
— E o que mais ela fez, além de acordar tarde?
— Isso já basta — respondi, irritado. — A casa precisa funcionar em ordem. Meu pai acreditava nisso, e eu também.
Ele cruzou as mãos, pensativo.
— Dante, ela passou anos em um internato. Está fora do ambiente dela pela primeira vez em muito tempo. É natural que leve um tempo para se ajustar.
— Eu não tenho tempo, Henry. Nem paciência para educar ninguém. Estou começando a achar que foi um erro aceitar essa tutela.
Henry me estudou por um instante, o olhar firme, quase paternal.
— Dê a ela um tempo. Deixe Evelyn respirar. Descobrir a casa, o ritmo, e... conhecer você.
O silêncio caiu entre nós.
“Conhecer a mim.”
As palavras ecoaram de um jeito estranho. Quase íntimo demais.
— Não há muito o que conhecer — murmurei, sem olhar para ele.
— É o que você pensa. — Henry se levantou, ajeitando o paletó. — Mas às vezes, Dante, o problema não está nas regras que alguém quebra. Está nas que a gente cria para não se aproximar de ninguém.
Eu não disse nada. E isso foi o suficiente para o assunto morrer e entrarmos em outro.
Henry me conhecia desde que eu era bebê. Ele e meu pai sempre foram amigos. Então, ele me conhecia o suficiente para saber que eu não estava preparado, nem apto, a deixar que alguém se aproxime, e faça eu me abrir. Não assim, tão rapidamente.
Depois de conversarmos mais um pouco, ele saiu, deixando-me sozinho com essa frase pendurada no ar.
Fiquei alguns minutos olhando pela janela, para o pátio do prédio. A cidade se movia lá fora — impessoal, previsível, segura. Tudo o que eu gostava. E, ainda assim, tudo o que Evelyn parecia ser o oposto.