CAPÍTULO 2

O som ritmado das teclas da máquina de escrever preenchia a sala estreita, entrecortado pelo tilintar de xícaras no fundo do corredor e pelas conversas abafadas de outros funcionários do jornal. O prédio era antigo, com paredes amareladas e janelas que rangiam ao menor vento. As cortinas sempre pareciam presas no tempo, tal qual as edições passadas que se empilhavam pelos cantos como relíquias esquecidas.

Lisanne estava sentada à sua mesa, próxima à janela, com os cabelos presos de qualquer jeito e os dedos ligeiros corrigindo e repassando textos já prontos, rabiscados à caneta por algum colunista mais importante. Não era um trabalho nobre, mas era o que pagava seus gastos e os pequenos luxos como suas tortinhas de morango aos domingos.

— Não esquece o ponto final, Lisanne! — resmungou o editor-chefe, um senhor de bigode farto e olhar severo que vivia com uma caneca de café frio na mão. — A pontuação é a alma do texto!

Ela assentiu com um sorriso resignado, enquanto seu colega de mesa, Tobias, um rapaz magro, de suspensórios largos e senso de humor peculiar, lhe piscava discretamente.

— Alma do texto, alma da paciência... — cochichou ele, provocando um risinho abafado.

— Se ele te escutar. — Ela disse, com um tom de alerta, mas tinha uma pitada de diversão por trás que o fez rir.

O expediente seguiu lento, como todas as segundas-feiras pareciam ser, até que finalmente o relógio indicou o fim do turno. Lisanne guardou seus papéis, ajeitou o casaco surrado sobre os ombros e saiu pelas ruas ainda envoltas por uma neblina suave, como se o céu jamais tivesse acordado de verdade naquele dia.

Ao virar a esquina próxima à praça, algo a fez parar. Um som leve, quase imperceptível — um miado, fraco e insistente, vindo de um dos becos estreitos entre as construções antigas. Ela hesitou, olhando para os lados, e então entrou cuidadosamente por entre as paredes úmidas.

No canto, entre duas caixas de madeira, um pequeno filhote de gato tremia, com os pelos úmidos e os olhos grandes fixos nela. Lisanne se agachou devagar, estendendo a mão.

— Você está sozinho aqui, pequenino?

O miado respondeu por si. Havia algo tão frágil naquela criatura que seu coração se apertou. Ela tirou o cachecol do pescoço e o envolveu no animalzinho com delicadeza. Enquanto o segurava, pensou em quantas vezes também se sentira assim nos últimos anos — pequena, solitária, tentando se manter aquecida em meio a um mundo frio demais.

Seguindo para casa, passou em uma lojinha e comprou uma pequena manta azul e um pacote de ração. O gatinho, agora aconchegado nos braços, parecia adormecido pela primeira vez em muito tempo. Lisanne fez carinho atrás das orelhas dele e murmurou:

— Talvez sejamos dois que perderam demais... tentando achar um jeito pra seguir adiante sem desmoronar, não é?

Ao chegar em seu apartamento, colocou uma caixinha forrada perto da janela, improvisando uma pequena cama. Acendeu uma vela perfumada, aqueceu água para um chá e se sentou no chão, observando o novo companheiro.

— Acho que você acabou de ganhar um lar... — sussurrou, sorrindo suavemente.

No alto da colina, envolta por ciprestes contorcidos e uma neblina densa como véu de luto, erguia-se a Mansão Zarturii. A estrutura gótica era como um sussurro esquecido do tempo: torres pontiagudas, gárgulas esculpidas em pedra negra, janelas verticais como olhos fechados. Por dentro, corredores longos onde o som dos passos parecia se arrastar pelas paredes, tapeçarias que cobriam histórias esquecidas e um silêncio tão antigo quanto os ossos sobre os quais a cidade fora construída.

A mansão parecia viva, pulsando em sua própria cadência ancestral. No salão principal, iluminado apenas por candelabros pendentes e chamas azuladas, Herus Zarturii folheava lentamente o jornal da cidade. Suas mãos pálidas viravam cada página com precisão, os olhos de um tom vermelho escuro analisava cada linha como se pudesse extrair o coração das palavras.

— Um corpo dilacerado foi encontrado em um dos vilarejos de camponeses, nos limites do distrito norte. — disse, sem tirar os olhos do papel.

Dayrath, sua esposa, estava sentada próxima à lareira, penteando os longos cabelos cor de marfim. Seu olhar era sereno, mas seu tom era firme.

— Lian voltou?

— Voltou. — Hérus suspirou. — Deixou um rastro atrás de si, como sempre. Não bastava chegar silenciosamente.

— Ele nunca volta silenciosamente. Ele é a tempestade. — Dayrath deixou o pente repousar sobre a mesa e se aproximou do marido. — Vai protegê-lo de novo? Cobrir seus rastros por quanto tempo mais?

Hérus abaixou o jornal e a fitou, cansado, mas firme.

— Ele é meu irmão. Mesmo quando quebra as regras... ainda é um Zarturii. E nós limpamos nossos próprios rastros.

— Um dia, Herus... — ela advertiu suavemente — ...não haverá rastros suficientes para cobrir o estrago. Precisa arrumar um jeito de fazê-lo parar.

O patriarca desviou o olhar para a grande janela do salão. Lá fora, a colina mergulhava em névoa espessa, como se o mundo além não existisse. Seus pensamentos voltavam-se para o Conselho, os membros de cada família de vozes ásperas e olhos sem idade, resmungando presságios incompreensíveis em reuniões cada vez mais tensas. A paz que mantinham era duradoura mas, possuía suas fragilidades. E os lobisomens — as tribos remanescentes — pareciam estar ficando mais inquietos dentro da floresta sombria, alguns avistamentos próximo ao limite da fronteira estavam ficando recorrentes.

— Teremos outro encontro em breve — disse ele, voltando-se a Dayrath. — E dessa vez... nós somos os escolhidos para firmar o acordo matrimonial.

— Eu tenho um mal pressentimento sobre isso, poderiam ter escolhido qualquer um dos nossos rapazes, mas… — o olhar dela endureceu.

Hérus assentiu com lentidão.

— Lian precisa se unir à filha de Alvarien. É uma das formas de mantermos a influência e a estabilidade. Pelo menos é o que eles querem. Só que, temo a reação do Lian quando souber.

Dayrath se afastou e ficou diante da lareira, suas mãos cruzadas nas costas.

— Ele não é feito para alianças. Já recusou acordos antes. Você sabe disso. Ele é sangue e fúria, não é diplomacia. Não ama, não se curva, não aceita correntes... nem pactos. Vai rejeitar essa proposta. E vai arrastar algo com ele quando o fizer.

Hérus se levantou. Sua silhueta ereta era a de um soberano antigo, que carregava nos ombros o fardo de gerações.

— Talvez. Mas ainda sou o primogênito dos Zarturii. E ele ainda ouve minha voz... mesmo quando finge não ouvir.

Por um instante, Dayrath permaneceu em silêncio, observando o reflexo das chamas nos olhos do marido. Então murmurou:

— O que você teme mais, Hérus? Que ele recuse... ou que aceite?

Do alto da colina, o vento uivava entre os pináculos da mansão. As sombras pareciam dançar pelas paredes. E enquanto Hérus encarava a escuridão, uma sensação ardia em seu peito imortal: algo se aproximava. Um chamado antigo, adormecido sob o solo frio. E Lian... seria a centelha.

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