CAPÍTULO 1

A névoa pairava sobre os telhados como uma carícia silenciosa, envolvendo cada chaminé, sacada e janela da cidade de Heradhor. Não era o tipo de névoa que ameaçava tempestade, mas aquela que sugeria segredos guardados, memórias antigas e uma melancolia doce. As ruas, pavimentadas com paralelepípedos gastos pelo tempo, brilhavam úmidas sob a luz opaca da manhã. O frio era gentil — pedia um casaco grosso e uma bebida quente, mas não impedia os passos tranquilos dos que começavam o dia.

A cidade, encravada entre colinas e cercada por bosques e fazendas que mudavam de cor conforme as estações, parecia ter parado no tempo. Embora algumas fachadas ostentassem letreiros simples, outros mais extravagantes e vitrines iluminadas, havia algo no ar — talvez o cheiro de pão fresco vindo da padaria ou o som das badaladas da velha catedral — que fazia tudo parecer mais antigo. Não antiquado. Antigo, como um livro de capa dura com folhas amareladas, onde cada canto conta uma história.

As janelas das casas ainda exalavam vapor, como se os sonhos da noite evaporassem com o calor dos primeiros cafés. O mercado local abria lentamente suas portas, e os vendedores bocejavam enquanto organizavam frutas e queijos nos estandes com mãos enluvadas. Algumas senhoras passavam, com cestos cheios de flores, pães e jornais enrolados. Um gato preguiçoso atravessava a rua como se fosse o dono da cidade, e as primeiras conversas do dia ecoavam baixas, respeitosas.

A vida seguia com seu próprio ritmo, ditado não pelo relógio, mas pelos sinos. A cada manhã, às sete em ponto, a catedral deixava sua presença conhecida por toda a cidade com quatro badaladas longas. Era como se dissesse: “Acordem, vivam, repitam.”

E foi depois dessas badaladas que Lisanne saiu da missa.

Envolta em um casaco escuro, simples, e há muito desgastado, Lisanne desceu os degraus da catedral ao lado de sua amiga. Tinha uma presença delicada, quase etérea, mas não frágil. Seus longos cabelos escuros caíam soltos nas costas, mas algumas mechas teimosas escapavam do coque alto que ela insistia em fazer todas as manhãs. Seu rosto era tranquilo, mas não sem vida; havia luz nos olhos e uma doçura natural no modo como sorria.

— Você não vai mesmo resistir, né? — provocou a amiga, lançando-lhe um olhar divertido.

Lisanne tentou manter a pose, mas seus olhos já denunciavam.

— Eu tentei. De verdade. Mas não posso passar em frente àquela doceria sem comprar pelo menos três caixas...

Era um costume antigo. Desde pequena tinha um vício por doces que extrapolavam os limites, a pequena confeitaria da esquina tornara-se parte de sua rotina quase tanto quanto as missas, que sua amiga Laura insistia em levá-la, mas não era uma devota fervorosa como Laura era. Voltando à doceria, Lisanne dizia que havia algo sagrado nos doces de lá. Ela tinha uma queda especialmente perigosa pelo doce de morango recheado com creme. Era sua perdição — e seu consolo.

Minutos depois, com a sacola de compras em uma mão e a caixa de doces cuidadosamente protegida na outra, Lisanne caminhava pelas ruas molhadas da cidade sozinha, Laura havia partido para a sua casa, prometendo uma visita depois. O céu ainda estava encoberto, e a névoa persistente fazia com que tudo parecesse suavizado, como um quadro em aquarela.

Seu prédio ficava a poucos metros da praça central, em uma das ruas principais da cidade, ladeada por árvores altas e antigas, cujos galhos dançavam lentamente com a brisa. A construção era modesta, de três andares, com paredes bege e janelas altas com molduras de madeira, porém a construção era um tanto velha e precisava de reparos, inclusive em sua porta de entrada. Subiu as escadas com passos leves, quase tropeçando no último degrau, e murmurou para si:

— Um dia ainda morro de vergonha por cair aqui...

Seu apartamento era pequeno, mas aconchegante. Assim que entrou, foi recebida pelo cheiro de livros e canela. As paredes eram pintadas em tons claros, e havia prateleiras abarrotadas de livros, vasos com pequenas plantas em recuperação, quadros com frases inspiradoras (quase todas tortas), uma escrivaninha de madeira antiga com papéis empilhados e, claro, uma máquina de escrever que reinava imponente no canto da sala.

No sofá, duas almofadas floridas e um cobertor de lã aguardavam por ela como velhos amigos. Em cima da mesa, uma caneca vazia ainda tinha vestígios de chá da noite anterior, e uma pilha de recortes, que aguardava uma futura organização que jamais aconteceria. Tudo era meio bagunçado, mas cheio de vida. Como ela.

Lisanne retirou os doces da sacola com cuidado cerimonial, organizando-os sobre a mesa como se fossem jóias. Pegou o de morango e mordeu com olhos fechados. Sorriu sozinha.

— Isso sim é começo de dia. — e com isso, ela seguiu com seu dia de repetições rotineiras, arrumando tudo como achava melhor e de fácil acesso.

No dia seguinte, ela acordaria cedo para mais um turno no jornal local, onde trabalhava como datilógrafa. Sua função era revisar e adaptar textos prontos, datilografando-os na máquina de escrever antes que fossem encaminhados para a diagramação. Não havia grande prestígio ali, nem manchetes com sua assinatura. Mas havia silêncio. E palavras. E um tipo de paz que ela não trocaria por nada.

Na manhã seguinte, o pequeno despertador de corda tocou às 6h45, mas Lisanne só levantou às 7h03, depois de derrubar o abajur tentando alcançá-lo. Seu cabelo estava rebelde, e a blusa que escolheu vestir tinha uma pequena mancha de tinta que ela só percebeu já a caminho da porta. Suspirou.

— Ninguém vai reparar, ninguém vai reparar...

O prédio do jornal era antigo, com janelas grandes e móveis que rangiam. A sala onde ela ficava tinha paredes forradas de papéis amarelados, pilhas de jornais velhos e uma máquina de escrever com teclas gastas, mas fiéis. Lisanne costumava chegar com um pequeno pacote de balas no bolso e escondia outro dentro da gaveta da mesa — o que chamava de “reserva emergencial de ânimo”.

Quando se sentava, ajeitava os óculos de leitura, prendia o cabelo de qualquer jeito com um lápis e começava a digitar. Às vezes, esquecia da hora do almoço. Outras, derrubava café nos papéis e passava os minutos seguintes tentando disfarçar a mancha com uma folha em branco por cima.

Apesar do ritmo repetitivo, Lisanne sempre encontrava pequenos motivos para sorrir: um erro engraçado no texto original, uma música que tocava baixinho na vitrola velha de seu chefe, ou o fato de conseguir organizar uma pilha inteira de documentos sem deixá-los cair. Pequenas vitórias.

Ao final do expediente, voltava para casa com passos tranquilos, passando na mesma confeitaria. Saiu de lá com três pacotes de doces — um deles, jurou a si mesma, era para uma colega de trabalho que ela sequer sabia se gostava de doces. Mas, de algum jeito, acabou comendo tudo sozinha no sofá, antes de passar o tempo tentando mudar o final de um conto que havia detestado, mas mesmo assim o jornal publicou, visando o ganho do escritor que contratara para fazer o serviço, era um hábito comum que possuía, trazia a cópia para casa e imaginava um final melhor. Então, escrevia à sua maneira, mas nunca havia pensado em obter algum ganho com aquilo.

Assim seguia a vida de Lisanne — feita de detalhes, tropeços, risadas abafadas e doçura em excesso.

E, por ora, tudo seguia exatamente como deveria ser.

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