CAPÍTULO 3

O vento assobiava pelas frestas da janela, mas Lisanne não se incomodava. Estava em sua pequena sala de trabalho, onde a poeira acumulada no chão contrastava com o zelo à sua antiga máquina de escrever. O tic-tac compassado das teclas era a única companhia naquele início de fim de tarde. O papel à sua frente já estava pela metade, preenchido por palavras que fluíam como se tivessem vida própria — uma nova história, mais intensa, mais sombria. Porém, desta ela até gostava, apesar de achar peculiar o gosto do escritor, falando sobre criaturas da noite e etc, tinha um tom realista nas palavras dele.

Apesar de estar sozinha naquele momento, Lisanne havia combinado com Laura que a encontraria mais tarde. As visitas de Laura eram raras, mas sempre bem-vindas — e frequentemente acompanhadas de palavras provocativas e perguntas desafiadoras.

No caminho até a casa de Lisanne, Laura vestia seu habitual casaco escuro e o inseparável cachecol de lã cinzento que envolvia seu pescoço com ares de aconchego e mistério. Era quase uma marca registrada — Lisanne já havia comentado como ele parecia parte do corpo dela.

Ao chegarem, conversaram, como de costume. Laura caminhou até um amontoado de papéis no canto da mesa e pegou duas folhas lendo. Voltando seu olhar para Lisanne surpresa perguntou:

— Foi você que escreveu? — Lisanne, já vendo onde a conversa iria parar, apenas afirmou com a cabeça em positivo, sem dar muita importância.

Só que Laura ficou visivelmente empolgada.

— Você tem que publicar isso. Não dá mais pra esconder o que você escreve. Isso é… incrível!

Lisanne sorriu, mas balançou a cabeça negativamente.

— Não, Laura. Eu não posso.

— Mas por quê? — Laura insistiu, seu olhar fixo e determinado. — O que eu posso fazer pra mudar essa sua ideia?

Lisanne hesitou. Não soube responder de imediato. Laura, no entanto, não desistiu.

— Vamos, diga. Qualquer coisa. Me dê uma chance.

Lisanne refletiu por alguns segundos, olhando para o vazio da parede. Ela pensou em algo que seria praticamente impossível para a amiga, já que nascera na cidade, era impossível não conhecer tudo ali. A intenção era fazer sua amiga desistir da idéia, e deixá-la em paz com isso.

— Me mostre algo que eu não conheça. — disse, enfim.

Laura ergueu uma sobrancelha. O brilho curioso em seus olhos logo deu lugar a um sorriso misterioso. Lisanne conhecia praticamente tudo naquela cidade, se recusava a viajar para lugares distantes, então isso estava fora de cogitação. Mas algo lhe veio à mente, isso ela tinha certeza de que Lisanne não conhecia, e, talvez, fosse possível ser através dela que pudesse fazer parte.

— Certo… Mas será um segredo. Só nosso. Ninguém pode saber. Me dá dois dias.

Lisanne achou estranho, mas assentiu. Dois dias, pensou. O que ela poderia preparar em dois dias?

Na noite marcada, Laura apareceu à porta, seu cachecol bem apertado ao pescoço e uma sacola de pano em mãos. O céu estava encoberto, a cidade coberta por uma névoa espessa.

— Vamos à missa da noite. — disse com uma calma incomum.

— Missa? Da noite? Nunca fui… — respondeu Lisanne, surpresa. — As de domingo de manhã já me bastam.

Laura sorriu, misteriosa.

— Você vai entender quando chegar lá. É algo que vai mudar tudo.

Na sacola, Laura trouxe um manto em tom vermelho escuro e um cordão com um medalhão prateado em forma de círculo, com uma estrela preta ao centro.

— Vista isso. — pediu.

Lisanne olhou o colar com estranhamento.

— Isso tudo tá parecendo uma seita… — brincou, meio séria.

— Confie em mim — Laura disse, com um tom doce e firme.

Elas seguiram pelas ruas até a grande catedral. À noite, o local parecia uma pintura gótica envelhecida — imponente e silenciosa, quase sufocante. Ao entrarem, instalaram-se nos bancos do fundo. O salão estava com poucos membros, comparado às missas matinais, vinte e duas pessoas contando com ela e Laura. Todos usando o mesmo manto e o mesmo medalhão, algo que também diferenciava das outras missas. Lisanne observava, desconfortável.

— Está tudo muito estranho. Não gosto disso — sussurrou.

Laura lhe segurou a mão.

— Só confie. Vai fazer sentido.

A cerimônia começou com orações murmuradas, pesadas, conduzidas pelo orador em tom quase hipnótico. O ar parecia carregado, a temperatura havia caído dentro da catedral. Lisanne se arrepiou da cabeça aos pés. Achando tudo muito estranho, diferente da leveza que as missas matinais passavam, essa carregava certo peso nas palavras, não parecia uma reunião dedicada à Shalgor.

O tempo se arrastava. Uma hora e meia depois, sua mente já latejava e os olhos ardiam. Até que um som quebrou o ritual — a porta rangeu. Um homem entrou. Silencioso. Seu semblante era obscuro, as roupas escuras destoavam dos demais. Ele se sentou discretamente, sem medalhão, sem manto.

Lisanne sentiu a espinha gelar, sem saber por quê, quando ele passou discretamente pelo corredor.

Pouco antes do final, ele se levantou. O orador o encarou.

— O que deseja, meu filho?

— Quero fazer uma confissão. — disse o homem. Sua voz soava humilde, pesarosa.

— Que seja breve — pediu o orador, convidando-o à frente. Enquanto dava uma rápida observada no grande relógio de pêndulo.

O homem caminhou devagar pelo corredor, como se saboreasse o momento. Chegando ao altar, parou.

— Perdão... eu venho buscar alívio. Pois trago pecado demais em mim.

— A essência não se perde enquanto busca purgar seus pecados. O ciclo sempre recebe os que se arrependem.

Neste momento, surge um sorriso diferente nos cantos dos lábios daquele homem, os olhos se tornam algo sombrio, frio e cruel.

— Ah... mas eu não vim buscar isso, para esquecer o que fiz...

— Então... por que veio?

— Vim buscar "alívio" — sua maneira de expressar as palavras começaram a tomar um tom irônico — porque vou cometer estes pecados de novo.

Lisanne despertou com dificuldade no pequeno sofá de sua sala. O corpo parecia pesar toneladas, e a cabeça latejava como se mil tambores tocassem ao mesmo tempo dentro de seu crânio. Tentou se sentar, cambaleando ao apoiar-se no braço do estofado, e respirou fundo, tentando conter a tontura que ameaçava derrubá-la de novo.

O silêncio reinava no ambiente, exceto pelo balançar do pêndulo do pequeno relógio de parede. A luz do sol filtrava-se fraca pelas frestas da cortina puída, lançando sombras longas pelo chão de madeira antiga. Com esforço, ela se levantou e caminhou até a minúscula cozinha, onde pegou um copo de cerâmica e o encheu com a água que guardava em um latão. Bebeu com avidez, como se estivesse desidratada há dias, e abriu uma lata de biscoitos simples, colocando alguns na boca.

O estômago, no entanto, rejeitou imediatamente o alimento. Uma náusea súbita a tomou, obrigando-a a correr até o pequeno lavatório improvisado do banheiro e vomitar tudo. Pois a mão na parede tentando ter algum apoio, encarando o próprio reflexo no espelho pequeno e embaçado. A pele estava pálida, quase sem cor. Os olhos fundos, com olheiras escuras. Ao tocar o pescoço, sentiu algo estranho: um tecido de pano ao redor, cobria firmemente um curativo. Seu coração disparou.

Curioso. Não se lembrava de ter se machucado. Ainda mais ali, no pescoço. E, muito menos ter feito um curativo tão impecável daquela forma, nem sabia fazer isso.

Voltou para a sala cambaleante e olhou para o relógio — quase três da tarde. Seu peito apertou. Não havia ido trabalhar. Isso certamente traria problemas depois. Seu chefe era chato, rígido com horários e ausências. Mas o cansaço era tão grande que os olhos fecharam novamente, e ela adormeceu ali mesmo, sem forças para enfrentar qualquer pensamento.

Quando acordou, o céu já se tingia de azul profundo, anunciando o início da noite. O corpo ainda doía, mas ela precisava sair. Vestiu um casaco grande tampando seu pescoço, desceu as escadas com certa dificuldade, chegando à saída principal notou a porta grande de madeira encostada novamente, o zelador não estava presente, o que a fez lembrar rapidamente da lista de reclamações que precisava fazer, uma reforma seria muito bem vinda ou logo partes do prédio começaria a cair. Indo para o lado de fora, atravessou a rua em direção à padaria simples do outro lado. O lugar estava mais vazio do que o comum para aquele horário. Era estranho. Costumava ver senhoras e trabalhadores por ali, mas agora havia apenas meia dúzia de pessoas já se preparando para recolher seus estandes e tendas de venda.

Chegou até o balcão e pediu seu pão favorito, alguns doces e café. Enquanto o padeiro embalava tudo, algo no canto do balcão chamou sua atenção: um jornal enrolado. Puxou-o, mais por reflexo do que por interesse. Desenrolou as folhas e a manchete saltou diante de seus olhos:

Ela sentiu o sangue esvair do rosto. Os olhos percorreram rapidamente as primeiras linhas — “Nenhum sobrevivente”, também dizia, em letras menores. O som ambiente pareceu se dissolver. O barulho do padeiro mexendo nas sacolas virou um zumbido distante. Um gosto metálico preencheu sua boca. A ponta dos dedos trêmulos amassou levemente a borda do papel.

— Uma tragédia... diziam que era um lugar seguro, sagrado... muitos fiéis mortos. Nenhum saiu com vida, dizem...

Lisanne ficou paralisada. Olhou a data da edição e quase deixou o jornal cair: notícia de dois dias atrás.

Sua cabeça doeu intensamente, como se algo tentasse emergir à força. Imagens desconexas começaram a surgir — flashes manchados, borrados... Laura, tingida de vermelho vivo... um homem coberto de sangue sorrindo de forma grotesca...

“Perdão…

…esquecer o que fiz…

…estes pecados de novo…”

E então... escuridão.

Quando voltou a si, estava sendo amparada pelo padeiro, que a segurava com firmeza, os olhos repletos de preocupação.

— Senhorita Lisanne? A senhorita está bem? Quer que eu a leve ao médico? Posso fechar aqui e ajudá-la…

— N-não... estou bem. Foi só... um mal-estar — respondeu, tentando soar convincente.

Ele insistiu por ajudá-la em pelo menos atravessar a rua, levando as sacolas e a deixou na porta de casa. Ela agradeceu, ainda confusa. Nada fazia sentido.

A última coisa que recordava com clareza era estar na catedral... com Laura. Não sabia ao certo o motivo de estarem ali, Laura queria lhe mostrar algo e depois de vestir um manto estranho, estavam lá, nada mais que isso, era o que conseguia lembrar agora. Lembrava-se apenas da presença da amiga ao seu lado, a atmosfera silenciosa e solene... e então, mais nada.

Nada além de um grande vazio.

Agora estava em casa, ferida, com dois dias em branco, sem ter ido ao trabalho, sem saber quem a levou até lá ou quem cuidou de seu ferimento e trocou suas roupas. Não lembrava sequer de revisar a matéria que acabara de ler. Alguém havia feito por ela? Havia perdido o emprego?

As ruas desertas... o medo nas poucas pessoas... o assassino ainda estaria solto?

E, acima de tudo, onde estava Laura?

Sua vida, antes marcada pela rotina repetitiva de textos, palavras e máquinas de escrever, agora parecia mergulhada num caos onde nada fazia sentido. Como se estivesse presa em um pesadelo — um terrível e silencioso delírio — do qual não conseguia entender, ou simplesmente despertar.

****************

Shalgor: Deus do conhecimento e sabedoria silenciosa. Lendas escritas como registros antigos dizem que ele caminhou sobre a terra há milênios atrás, ensinando e cuidando dos humanos. Mas traído por uma mortal, se ausentou ocultando sua presença, junto a esses rumores e sussuros, ousam dizer que no momento da descoberta de traição sua aparência mudou drasticamente, sua pele empalideceu, uma venda surgiu sobre seus olhos e sua boca fora costurada, e aqueles que eram devotados a ele, sentiram sua essência partir deixando um grande vazio. Porém, as tradições e a crença por ele não morreram, ela permeia pelos séculos, naqueles que ainda clamam por seu retorno.

Nota da autora: Há outras divindades neste mundo? Sim, mas ainda não terminei eles kkkk assim como os lobisomens que por sinal, estão me dando muito trabalho.

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