Dois dias. Foi esse o tempo que se passou desde que os olhos de Leonardo se abriram pela primeira vez. E desde então, Isabela carregava aquele segredo como uma pedra em seu peito. Não contou a ninguém. Não ousava. Talvez, no fundo, ela desejasse que aquilo não tivesse acontecido. Que fosse apenas um delírio, uma alucinação fruto do medo e da pressão insuportável que a consumia desde o dia do casamento.
Mas a verdade pesava em cada segundo.
Leonardo estava acordado.
Ou... algo nele estava.
Ela lembrava dos olhos dele, como se ainda os visse cravados em sua pele — verdes, intensos, mas sem calor. Sem alma. Pareciam olhos de um predador analisando a presa. Não havia expressão, não havia fala. Apenas o olhar que a perseguia em cada canto da mansão.
Durante o dia, a vida seguia como se nada houvesse mudado. A casa estava em silêncio, as empregadas lhe sorriam com respeito, os criados traziam chá e toalhas limpas, e o cozinheiro preparava refeições finas para ela, como se fosse parte da família. Era uma farsa bem encenada. Um teatro sutil onde todos fingiam que ela era bem-vinda — quando, na verdade, ela era prisioneira.
A enfermeira, que deveria visitar Leonardo todos os dias, ainda não aparecera. Isabela ouvira Helena falar em tom baixo ao telefone, reclamando da demora da equipe médica, mas isso não acalmava sua alma. Pelo contrário. Aquilo tudo cheirava a encenação. Era como se tivessem desaparecido com os profissionais de propósito.
Ela pensou em fugir. Mil vezes. Chegou a observar as rotas de entrada e saída, memorizar os turnos dos seguranças, imaginar como passaria pelo portão sem ser notada. Mas era impossível. Havia homens demais, olhos demais, cercas altas e vigilância constante. Cada porta trancada, cada janela selada, cada sorriso educado escondia a mesma verdade:
Ela estava trancada numa prisão feita de luxo e ouro
Na terceira noite, a exaustão venceu.
O sofá onde dormia desde a noite do susto parecia ter sido feito para tortura. Era estreito, duro, e a cada nova posição que tentava encontrar, seus ossos protestavam com dores lancinantes. As olheiras marcavam seu rosto, e suas costas doíam tanto que ela mal conseguia ficar de pé ao amanhecer.
Por fim, já alta madrugada, Isabela cedeu. Num sussurro cansado, quase como um pedido de permissão, arrastou-se até a cama. Passou os olhos por Leonardo. O rosto dele estava virado para o outro lado. Parecia inerte, adormecido. Como sempre.
Ela se deitou com cuidado, como quem invade um território sagrado. O colchão cedeu sob seu corpo magro. Os lençóis tinham perfume de lavanda e um toque de seda. O travesseiro era um alívio aos músculos tensos. A coberta morna parecia um abraço que ela não recebia há tempos.
“Só por algumas horas…”, murmurou em sua mente. “Ele não está consciente. Ele não vai saber.”
E então, dormiu.
Afundou num sono pesado e profundo. Pela primeira vez em dias, seu corpo e sua mente descansaram. Não sonhou. Apenas adormeceu como se seu corpo tivesse se rendido ao torpor da dor acumulada.
Mas a paz não durou.
Ela não saberia dizer quanto tempo depois foi. Podiam ter se passado minutos, ou horas. Mas algo despertou nela — uma sensação de que algo não estava certo. Um arrepio súbito, um frio que não vinha da temperatura do quarto, mas de dentro dela mesma.
E então, ela sentiu.
Um toque.
Sutil. Lento. Como o roçar de uma pena sobre sua pele.
Começava em sua perna. Acariciava, subia, quase com ternura. Mas havia algo no gesto que arrepiava cada fibra de seu ser. Não era afeto. Era exploração. Era posse. Era algo que a fazia querer gritar sem som.
Os olhos de Isabela se abriram, arregalados.
Ela não se moveu.
Ficou paralisada, com os batimentos do coração ecoando como trovões nos ouvidos. Seus músculos estavam tensos, petrificados pelo pavor. O cérebro mandava ordens: levante-se, corra, grite — mas o corpo não obedecia.
O toque voltou.
Dessa vez, mais firme. Mais deliberado. Uma mão que a reconhecia. Que sabia exatamente onde tocava.
E então ela se virou, num movimento brusco, e gritou:
— NÃO!!!
O som rasgou o silêncio como uma lâmina. Ela sentou-se na cama, encarando o corpo ao lado.
A mão de Leonardo repousava ao lado dela, imóvel. O rosto dele permanecia virado para o outro lado, como se dormisse. Mas Isabela sabia o que sentiu. Ele a tocou. Aquele gesto não fora parte de um sonho. Não fora produto do cansaço. Ela sabia.
Tentou respirar fundo, mas o ar parecia pesado. O quarto a esmagava. O medo tomava forma física — um monstro silencioso, deitado a centímetros dela.
“Esse homem está possuído…”, sussurrou para si, engolindo o choro. “Não posso mais dormir aqui. Eu preciso sair daqui.”
Mas não havia para onde ir.
Não havia ninguém que acreditasse nela.
Não havia escapatória.
Sentou-se no canto da cama, os joelhos contra o peito, os olhos abertos no escuro. Sentia-se observada. Sentia que ele, mesmo com os olhos fechados, a via.
E naquele silêncio absoluto, ela finalmente compreendeu:
Leonardo não voltara sozinho do coma.
Ele trouxera algo com ele. Algo que agora dividia aquele quarto com ela.
E algo que, a cada noite, despertava mais.