O céu de domingo tingia-se de laranja quando o jato particular da família Villar aterrissou suavemente na pista privada do aeroporto. Camila Santos, com os cabelos presos em um coque simples e a expressão levemente cansada, desceu ao lado de Leonardo Villar, que usava óculos escuros e mantinha um semblante sério, como se estivesse carregando o peso de um mundo que não queria dividir.
Entraram no carro preto que os aguardava com discrição, e seguiram pela estrada sinuosa que levava até a mansão da família. A viagem deveria durar menos de uma hora. Mas o destino, caprichoso como sempre, decidiu interromper aquele trajeto com brutalidade.
O som do impacto foi seco. Um grito. Vidros estilhaçados. Pneus derrapando no asfalto molhado. O mundo virou escuridão.
O noticiário da manhã seguinte falou em “falha mecânica”, “curva perigosa”, “alta velocidade”. Mas nenhuma dessas palavras conseguia traduzir o terror estampado nos rostos dos paramédicos que atenderam à ocorrência.
Camila sobreviveu.
Com o corpo coberto por escoriações, algumas costelas fraturadas e um olhar em estado de choque, ela mal conseguia pronunciar o próprio nome. Já Leonardo... Leonardo estava inconsciente. Inerte. Havia sofrido um severo traumatismo craniano. Seu prognóstico era reservado.
Duas semanas depois, a ala norte do segundo andar da mansão Villar foi transformada em um pequeno hospital particular. Um leito ortopédico fora instalado em meio ao mármore branco e aos cortinados de linho puro. Equipamentos de última geração sussurravam bipes constantes no ar silencioso. E no centro de tudo, repousava Leonardo.
Seu corpo, antes vibrante e cheio de vida, estava agora imerso em um estado de torpor profundo. Os olhos fechados, a pele pálida, a respiração dependente de aparelhos. Um homem suspenso entre a vida e a morte.
Os dias se arrastaram. Depois meses. Anos.
Três anos inteiros.
Leonardo respirava agora por conta própria. Os aparelhos haviam sido retirados. Mas ainda assim... ele não despertava. O coma persistia. Um sono sem sonhos. Uma ausência que machucava tanto quanto a morte.
Naquela manhã de domingo, a mansão permanecia silenciosa, como se respeitasse o luto inacabado de sua matriarca.
Helena Villar caminhava com passos firmes pelo corredor. O salto de seus sapatos ecoava sobre o piso de mármore com uma cadência de autoridade e elegância calculada. Usava um vestido sóbrio, cinza escuro, e trazia nos olhos a frieza de quem aprendeu cedo que fraqueza é um luxo que poucos podem se permitir.
Ao adentrar o quarto do filho, o ar pareceu se tornar mais denso. Por um instante, ela apenas observou.
Leonardo, seu primogênito, jazia ali. Um homem feito, prisioneiro do próprio corpo. A mandíbula bem delineada agora parecia rígida. A barba rala era aparada diariamente por enfermeiras treinadas. Seus cabelos escuros estavam penteados para o lado, como ele sempre gostou. Mas ele... não estava ali.
Helena aproximou-se e, com uma delicadeza rara, passou a mão pelos fios de cabelo do filho. Um gesto quase materno. Quase.
Seu olhar, porém, era outro.
Desviou os olhos para o criado-mudo, onde uma fotografia antiga exibia Leonardo ao lado do pai, Arthur Villar. Ambos sorriam, em um dia ensolarado nos jardins da mansão. Um momento capturado antes da tragédia. Antes do fim.
Helena sussurrou:
— Você pode morrer a qualquer momento...
A voz, baixa e carregada de uma ternura falsa, tremia como uma prece amarga.
— Mas eu não vou deixar que esse império vá embora com você.
Virou-se, os braços cruzados, o olhar agora endurecido como aço polido.
— Você precisa se casar — murmurou para si. — Precisa deixar um herdeiro. Um nome. Um vínculo de sangue. Assim... a herança continuará na família. Na minha família.
Fechou os olhos por um instante, deixando que uma lembrança antiga a invadisse sem permissão.
Leonardo tinha vinte e seis anos na época. Jovem, ambicioso, brilhante. Mas naquela primavera, algo havia mudado em seu olhar. Estava diferente. Suave. Vulnerável.
— Mãe — ele dissera, sorrindo como um garoto —, ela é tudo o que eu sempre procurei. Quero construir uma vida com ela. Casar. Ter filhos.
Ela lembrava-se perfeitamente do nome.
Camila Santos.
Jovem. Professora de literatura. Órfã. Criada por uma tia enfermeira em um bairro modesto. Camila não trazia consigo um sobrenome influente, nem alianças políticas, muito menos patrimônio. Tinha apenas uma mente brilhante, uma alma sensível... e aquele olhar luminoso que desarmava qualquer armadura emocional.
Desarmou até Leonardo.
E isso foi imperdoável.
Helena tentara tudo. Sutilezas cortantes, jantares desconfortáveis, observações venenosas disfarçadas de conselhos. Tentou afastá-los com o peso das diferenças sociais. Mas Leonardo, apaixonado pela primeira vez, a enfrentou.
— Eu a amo, mãe. Não me peça para desistir. Não dessa vez.
Helena viu nos olhos do filho a centelha de Arthur. A mesma teimosia. A mesma fé tola no amor.
Camila era perigosa. Não por ambição — mas por sentimento. E sentimento, naquela casa, era uma ameaça silenciosa.
Então veio o acidente.
E o desaparecimento súbito de Camila.
Ela sumiu.
Como fumaça. Sem deixar rastros. Nenhum contato. Nenhuma visita ao hospital. Nenhuma carta. Nada.
Helena sabia. Ou ao menos suspeitava. Aquilo não fora um abandono comum. Fora uma ruptura calculada. E ela, no fundo, talvez — só talvez — tivesse tido alguma participação nisso. Um telefonema aqui, uma ameaça velada ali. Influência é uma arma silenciosa. E Helena era uma mestra em usá-la.
Agora, diante do corpo adormecido do filho, tudo o que restava era o plano.
Ele precisava se casar.
Mesmo inconsciente.
E a noiva... teria que aceitar o papel sem conhecer o jogo.
Helena saiu do quarto com passos lentos, mas mente acelerada. Cada movimento agora seria uma jogada de xadrez.
Ela não perderia o trono.
Nem o império.
Nem o legado.
Mesmo que para isso precisasse selar um pacto com o silêncio.