A tarde caía devagar sobre a mansão Villar, tingindo as paredes de tons dourados e tristes. Helena estava sentada no divã de veludo azul-marinho, na sala íntima que outrora usava para receber amigas da alta sociedade. Agora, ela usava aquele espaço apenas para pensar. Pensar… e arquitetar.
As pernas cruzadas elegantes, as mãos trêmulas envoltas em luvas finas, e os olhos fixos em nada. Havia uma taça de vinho intocada sobre a mesa de canto. O som do relógio de parede preenchia o cômodo com uma batida pontual, irritante. Tic. Tac. Tic. Tac.
— Ele morreu me odiando… — murmurou para si, referindo-se ao falecido marido, Artur Villar.
Reviu mentalmente a cena no escritório. A assinatura firme, o olhar de desprezo, e aquele testamento miserável que a deixava… com nada. Absolutamente nada. Tudo para Leonardo, o filho que agora estava preso a uma cama, como um boneco de porcelana quebrado.
Ela franziu os lábios.
— E se ele morrer... tudo vai para o Estado — repetiu, quase num sussurro de veneno. — Não. Não posso permitir.
Ela se levantou devagar e caminhou até a estante, onde repousava uma moldura prateada com a foto dos dois filhos. Leonardo, sério, sempre distante; Caio, sorridente, fútil, imprestável. Helena suspirou. O mais novo era seu sangue, seu espelho — e justamente por isso, incapaz de herdar um centavo.
“Ele não é filho de Artur”, recordou. “E isso é o que me condena.”
Seu olhar voltou-se para o divã, como se ali houvesse respostas. Sentou-se novamente, agora com as costas eretas, como uma rainha diante da guerra. Fechou os olhos. Permitiu-se sentir. Um minuto apenas.
Medo. Raiva. Ambição. Desespero.
E então… clareza.
— Preciso casar Leonardo antes que ele morra — disse, abrindo os olhos. — Uma esposa legítima, alguém que eu domine. Um herdeiro. Mesmo que ele nunca saiba.
A ideia a deixou inquieta, quase excitada. Casar o filho em coma. Uma cerimônia rápida, discreta, legal. E para isso, ela precisaria de uma noiva que não questionasse, que obedecesse, que não tivesse ninguém para protegê-la.
Alguém simples. Alguém grata.
Alguém como Isabela Andrade.
— A caçula da Cecília… — sussurrou, lembrando da menina tímida que mal levantava os olhos quando falava. — É perfeita.
Helena se levantou de novo e andou até a janela, observando o jardim onde as folhas caíam. O outono já despia as árvores, e o tempo corria. Leonardo podia morrer amanhã. Ou hoje.
Ela se virou com decisão e apertou um botão ao lado do sofá. A voz da empregada respondeu no interfone.
— Sim, dona Helena?
— Ligue para Cecília Andrade. Quando ela estiver na linha, passe para mim. É urgente.
— Sim, senhora.
Helena voltou ao divã. Pela primeira vez em dias, sentiu-se no controle outra vez.
Ela ergueu a taça de vinho, sorveu um gole lento, e murmurou com a voz fria como aço:
— Se meu filho não pode gerar herdeiros por vontade... que gere por imposição. A lei está do meu lado. E o tempo, ainda, também.
No andar de cima, Leonardo respirava em silêncio.
E abaixo dele, no ventre da ambição de Helena, nascia o plano que mudaria o destino de todos.
Na periferia da cidade, onde as ruas de paralelepípedos esburacados misturavam poeira e lembranças, Isabela Andrade crescia entre risos simples e sonhos pequenos. Prestes a completar dezoito anos, ela levava uma vida pacata ao lado da mãe, Cecília, e da irmã mais velha, Bruna — a alma forte da casa, que trabalhava dobrado para garantir que a geladeira tivesse o básico e que Isabela não precisasse abandonar os estudos.
A casa era humilde, mas limpa, com cortinas floridas na janela e cheiro de café fresco logo pela manhã. Apesar das dificuldades, havia amor ali. Um amor verdadeiro, genuíno, que se bastava.
O que Isabela não sabia — o que ninguém poderia imaginar — é que sua vida seria arrancada daquele chão simples e jogada ao centro de um jogo cruel. Um jogo que misturava poder, herança e desespero.
As famílias Villar e Andrade possuíam um elo antigo. Havia histórias cruzadas, favores, dívidas silenciosas e uma relação que, embora desigual, mantinha-se viva por décadas. Helena Villar, que conhecia cada peça desse xadrez familiar, sabia exatamente onde tocar.
Ela observava de longe. Sabia que Bruna era obstinada, firme, uma mulher que enfrentava o mundo de cabeça erguida e olhos alerta. Impossível manipulá-la. Mas Isabela… ah, Isabela era outra história.
Tímida. Gentil. Sonhadora. Daquelas que acreditavam no bem, na bondade, no amor. Perfeita. Perfeita para ser moldada. Usada. Despida da própria vontade em nome de um plano muito maior do que ela poderia imaginar.
Quando a empregada retornou com o telefone nas mãos, Cecilia já estava na linha.
— Alô?
— Cecília? — disse Helena, com uma doçura ensaiada. — Que bom ouvir sua voz depois de tanto tempo. Aqui é Helena… Helena Villar.
Houve um breve silêncio. Do outro lado da linha, Cecília apertou o telefone contra a orelha, desconfiada.
— Senhora Villar… não esperava sua ligação.
— Eu imagino. — A voz de Helena era cálida, quase maternal. — Mas pensei muito em vocês nos últimos dias. Em sua filha, Isabela... Ela está prestes a fazer dezoito anos, não está?
Cecília sentiu um aperto no peito. Era raro alguém mencionar sua filha mais nova com tanto interesse.
— Sim. Mas por quê?
Helena se inclinou para frente, como se mesmo através do telefone pudesse seduzir com palavras.
— Porque eu quero conversar com você sobre o futuro dela. Sobre um futuro brilhante, minha querida Cecília. Uma proposta... que pode mudar a vida de vocês para sempre.
Cecília apertou os olhos, tentando entender o que se escondia por trás daquele tom suave. Ela conhecia Helena. Sabia que nenhum gesto dela era gratuito. Mas também sabia que Isabela merecia mais. Mais do que aquela casa apertada. Mais do que o que ela, como mãe, poderia oferecer.
— Que tipo de proposta? — perguntou, hesitante.
Helena sorriu. Um sorriso que ninguém podia ver, mas que escorria pela linha telefônica como veneno em seda.
— Um casamento.
Cecília ficou em silêncio.
— Um acordo. Um futuro seguro. Estabilidade, conforto, nome. A chance de sua filha ser parte de algo grandioso.
— Com… quem? — a voz de Cecília quase falhou.
Helena fez uma pausa longa. E então, calmamente, disse:
— Com meu filho. Leonardo.
Cecília levou a mão à boca. Ela sabia. Todos sabiam. Leonardo estava em coma. Preso entre a vida e a morte. Mas antes que pudesse protestar, Helena acrescentou, com firmeza disfarçada de gentileza:
— Ele precisa de alguém. Uma companheira. E Isabela é perfeita. Jovem, pura, discreta. Seria… simbólico. Poderoso. Legalmente suficiente.
Do outro lado da linha, Cecília fechou os olhos. A proposta era absurda. Insana. Mas, no fundo… havia algo mais assustador ainda: e se ela dissesse não?
Naquela noite, depois da ligação, Helena desligou calmamente o telefone e olhou para a lareira acesa à sua frente. Seus olhos brilhavam de determinação.
— O destino de Isabela começou a ser escrito hoje — murmurou para si. — Com tinta invisível. Uma tinta feita de mentira, desespero… e silêncio.
Silêncio este que seria interrompido mais cedo do que ela imaginava — pelos batimentos frágeis, porém determinados, de três corações inocentes que ainda estavam por vir.