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4 - Offline para o amor

 Areias Movediças

Narrado por Clara –

Acordei com o som das ondas batendo ritmadas contra as pedras, como se a natureza me chamasse para um novo começo — ou para mais uma tentativa frustrada de me entender fora das telas. O calor da casa continuava insuportável, mas já não me incomodava tanto quanto a ausência de notificações.

Desci até a praia, o sol ainda tímido atrás das nuvens, e me sentei na areia úmida. Rafael apareceu logo depois, com uma cesta de peixes. Fingiu não me ver, mas seus olhos demoraram um segundo a mais do que o necessário sobre mim. E então, falou:

— Já tá acostumando com a vida real ou ainda tá em crise de abstinência?

Revirei os olhos, mas sorri. A verdade é que ele não estava errado.

— Ainda sinto falta da minha bolha. Mas acho que ela estava cheia demais pra respirar.

Ele sentou ao meu lado, longe o suficiente para manter a tensão, perto o bastante para me desconcentrar.

— Você não parece do tipo que gosta de silêncio. Por que veio pra cá, de verdade?

— Porque eu me perdi. E achei que era aqui que eu ia me encontrar — respondi, surpresa com a minha própria honestidade.

Ele não respondeu. Apenas olhou para o mar e, por um instante, senti que ele entendia.

Nos dias seguintes, Rafael começou a aparecer com mais frequência. Às vezes com frutas, outras vezes com histórias sobre o vilarejo, contadas de forma crua, quase bruta. Era como se ele estivesse me testando. E eu me deixava ser testada, sem filtros.

Na quarta noite, durante uma tempestade que deixou a casa sem luz, sentamos no alpendre e compartilhamos histórias de infância. Eu falei sobre como usava os filtros como escudo, como transformava a tristeza em estética. Ele contou sobre a perda do pai e o quanto desprezava o mundo que só mostrava o lado bonito da dor.

— Você é corajosa por estar aqui — disse ele, com a voz baixa.

— Ou desesperada — sussurrei de volta.

Nos olhamos por um momento que durou mais do que deveria. Então ele desviou o olhar, pigarreou e disse:

— Amanhã vou te levar a um lugar. Sem câmera. Sem roteiro.

Meu coração acelerou. Pela primeira vez, alguém me convidava não para ser vista, mas para ver.Na manhã seguinte, Rafael chegou cedo, como prometido. Usava uma camiseta desbotada, um boné antigo e o mesmo olhar enigmático que me desconcertava. Estava com duas bicicletas enferrujadas.

— Vai ter que pedalar. Carona só pra peixe — disse, jogando uma garrafinha d’água na minha direção.

Revirei os olhos, mas aceitei. Meu corpo já não sentia tanta falta do sofá nem da tela azul do celular. Estava se acostumando ao esforço físico, ao suor escorrendo pelo pescoço, ao cheiro salgado do vento batendo na cara.

Pedalamos por uma trilha estreita entre árvores, subimos uma pequena colina e, quando o mato se abriu, me vi diante de uma falésia com vista para o mar aberto. O cenário era arrebatador. Não dava para postar, não dava para gravar — só sentir.

— Eu venho aqui quando tudo pesa — ele disse, com a voz baixa.

— É lindo. Parece que o mundo faz silêncio aqui.

Ficamos em silêncio por alguns minutos, lado a lado. E foi ali que senti a primeira faísca de algo verdadeiro em muito tempo. Não era paixão imediata, era uma conexão silenciosa. Um entendimento entre duas dores que se reconheciam.

Ele virou-se para mim e falou, com um misto de provocação e sinceridade:

— Cuidado pra não se acostumar demais com isso. A vida real também vicia, sabe?

— E o que você faria se eu me acostumasse?

— Fugiria. Eu gosto de ser exceção, não regra.

Sorri, sem saber se ele estava brincando ou tentando se proteger. Mas antes que pudesse responder, ele se aproximou. Ficamos frente a frente, o vento jogando meu cabelo nos olhos, e por um momento achei que ele fosse me beijar.

Mas ele recuou. Deu um passo para trás e disse:

— Vamos descer antes que escureça. Esse lugar é bonito, mas traiçoeiro depois das seis.

Na descida, a tensão pairava entre nós como a neblina que começava a subir do mar. A clareza daquele momento ficou gravada na minha pele — mais do que qualquer post, mais do que qualquer curtida. Aquilo era real. E eu não sabia se estava preparada para lidar com isso.

De volta ao chalé, com os cabelos ainda grudando na nuca pelo suor da pedalada e as bochechas queimando do sol, eu me sentia… viva. Estranhamente viva. E isso me assustava mais do que qualquer ausência de sinal de internet.

Mas a sensação durou pouco.

Ao abrir o notebook — mais por hábito do que por esperança de conexão — vi que, por algum milagre, uma mensagem havia carregado no aplicativo offline de sincronização. Era da Júlia, minha assessora. O texto era curto, direto, e me gelou até os ossos.

“Clara, precisamos falar URGENTE. Pedro está dando entrevistas. Disse que você surtou, que veio ‘se esconder’. A história tá saindo do controle. Me liga assim que possível.”

Fechei o laptop com força. O som seco da tampa batendo ecoou pelo chalé silencioso. Fiquei ali sentada, no sofá, sentindo a onda de adrenalina me invadir como uma febre.

Era isso. O mundo que eu estava tentando deixar para trás não estava disposto a me esquecer tão fácil. E Pedro… Pedro sabia exatamente onde me ferir: no orgulho, na imagem, na narrativa que eu tentava reconstruir.

Levantei e comecei a andar de um lado para o outro, como se o movimento pudesse me trazer alguma solução. Mas tudo que encontrei foi um espelho encardido, pendurado de forma torta na parede da cozinha.

Me olhei. E por um instante, não me reconheci. Nem a Clara de antes, nem a de agora.

Só eu. Só carne, suor, raiva.

E pela primeira vez, desejei que Rafael estivesse ali. Não para me salvar, mas para me lembrar que eu ainda era real.

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