No dia seguinte, quando finalmente criei coragem para sair de casa e explorar o vilarejo, o sol estava alto e o vento salgado trazia um frescor que ajudava a aliviar um pouco o peso daquela desconexão que eu sentia. Fui até um pequeno mercado na praça principal, que era basicamente uma casinha com uma varanda e algumas prateleiras repletas de itens locais. Assim que entrei, um homem alto, de cabelos castanhos um pouco desalinhados e olhar firme, me encarou do outro lado do balcão. Havia algo nele que me fez endireitar a postura.
Ele não se mexeu; parecia mais curioso do que interessado.
"Oi," eu disse, tentando soar amigável. "Sabe onde posso encontrar café por aqui?"
Ele arqueou uma sobrancelha, os olhos me estudando de cima a baixo. "Turista?" perguntou, como se fosse óbvio.
"Sim. Estou aqui por… um tempo," respondi, sem entrar em detalhes. Tentei sorrir. "E você? Trabalha aqui?"
Ele soltou uma risada curta, sem humor. "Você acha que esse lugar é um cenário para seu próximo vídeo ou algo assim?"
Eu pisquei, surpresa. "Como assim?"
Ele cruzou os braços. "Sei bem como funciona. Uma ‘influenciadora’ chega, faz uma pose para a câmera e vende esse lugar como o próximo refúgio espiritual da moda. Mas depois, vai embora, e a gente fica com os restos."
"Uau," murmurei, sentindo a irritação brotar. "Nem me conhece e já me colocou em uma caixa. Acho que não é justo, né?"
"Justo?" Ele soltou um suspiro, parecendo entediado. "Você realmente acha que entende o que é viver aqui?"
Cruzei os braços, tentando segurar o incômodo que ele despertava em mim. "Por acaso, eu vim aqui justamente para fugir dessa vida digital que você acha que entende tão bem."
Ele me lançou um olhar descrente. "Vou te dar uma semana. Depois, aposto que vai estar desesperada para postar uma selfie."
Fiquei ali, encarando-o, sentindo a mistura de desconforto e frustração crescer. Eu, que estava acostumada a elogios e simpatia, sendo tratada com frieza e sarcasmo. "Desculpa, mas o que exatamente te dá o direito de me julgar assim? Você nem me conhece. "
Ele deu de ombros, finalmente desviando o olhar. "Talvez eu só esteja cansado de ver gente que chega aqui querendo transformar tudo em conteúdo. A gente é mais que isso."
Soltei um suspiro, deixando que o silêncio tomasse conta do ambiente. Ele já tinha uma visão de quem eu era, e, honestamente, eu não sabia se valia a pena tentar mudar sua opinião.
"Meu nome é Clara," eu disse, estendendo a mão.
Ele olhou para minha mão, hesitou, e finalmente apertou, firme e breve. "Rafael."
Era só um aperto de mão, mas parecia um desafio.
Rafael largou minha mão, e o peso daquele olhar cético ainda pairava sobre mim, me deixando inquieta. Era como se ele enxergasse diretamente minhas inseguranças, como se soubesse o que eu queria deixar para trás mas não conseguisse escapar. Eu, Clara, que sempre me mostrava tão segura para o mundo, agora estava ali, sendo avaliada sem filtros por alguém que não dava a mínima para minha fama ou seguidores.
Decidi não me intimidar e insisti no papo, talvez mais para provar para mim mesma que eu podia lidar com isso.
"E então, Rafael," comecei, tentando soar casual, "o que você faz aqui além de julgar quem vem de fora?" Eu sabia que era um pouco provocativo, mas algo me dizia que ele respeitaria a honestidade.
Ele soltou uma risada baixa, sem desviar o olhar e me respondeu direto e reto. "Vivo minha vida. Trabalho com o que dá e não preciso mostrar isso para o mundo todo."
"Engraçado," rebati, "eu também vim para cá para não mostrar nada. Vim justamente para fugir disso."
Ele ergueu uma sobrancelha, como se não acreditasse nem por um segundo. "Fugir da vida digital? Você mesma acredita nisso?"
Senti a irritação borbulhar, mas também sabia que ele tinha algum motivo para desconfiar. Respirei fundo, tentando explicar sem me trair. "Talvez você ache que conhece o tipo de pessoa que eu sou, mas estou aqui para descobrir outra coisa, sabe? Ou melhor… para descobrir quem eu sou fora de tudo isso."
Ele me estudou, e o silêncio foi ficando cada vez mais pesado. Eu não conseguia definir se ele estava interessado ou apenas me testando.
"Bem," ele finalmente disse, "vou ficar curioso para ver se você consegue." Depois de um segundo, completou: "Esse lugar já viu muita gente passar, mas são poucos os que realmente entendem o que significa estar desconectado."
Aquilo ficou ressoando em mim. Ele estava certo, mesmo sem me conhecer. Era fácil dizer que eu queria uma “desconexão”, mas lidar com o silêncio, com a ausência de aprovação e com a solidão real? Era outra história. Rafael pareceu perceber algo em mim naquele momento, pois relaxou um pouco a postura e mudou o tom.
"Então, você quer um café ou não?" ele perguntou, quase rindo.
Sorri, aliviada. "Sim, quero muito."
Sentei-me na pequena mesa de madeira que estava no centro do mercado, observando Rafael preparar o café. Ele parecia indiferente, como se a interação fosse uma rotina sem qualquer significado. Por mais que tentasse, eu não conseguia deixar de me sentir um pouco frustrada. Afinal, eu estava acostumada a ser a pessoa com a conversa pronta, com o sorriso que sempre atraía atenção. Mas ali, naquela pequena cidade, nada disso parecia importar. E, para ser honesta, aquilo mexia comigo de uma maneira que eu não sabia como lidar.
A xícara chegou à minha frente, quente e simples. O café tinha um cheiro forte e um gosto levemente amargo, como tudo ao meu redor. Engoli em seco, tentando processar tudo o que estava acontecendo. Aqui não havia aplausos, não havia ninguém para curtir minha postagem de boas-vindas ao lugar. Não havia mais um filtro entre mim e o mundo real.
"Você nunca me disse o que trouxe você até aqui de verdade," Rafael disse de repente, interrompendo meus pensamentos.
Olhei para ele, hesitei, e então falei com um tom mais baixo, quase como se estivesse admitindo algo que nem eu mesma acreditava. "Eu... Eu precisava parar. Parar de ser quem todo mundo acha que eu sou."
Ele me observou por um momento, com os olhos quase desafiadores. "Quem você acha que é?"
Essa pergunta me pegou de surpresa. Não estava pronta para uma introspecção tão direta. Por um segundo, fiquei sem palavras, porque a verdade era que eu mesma não sabia mais. "Eu não sei", respondi, com uma sinceridade que não tinha há muito tempo. "Eu pensei que poderia encontrar algo aqui, algo que me fizesse entender o que eu realmente sou."
Rafael deu de ombros, como se eu estivesse dizendo algo óbvio. "E o que te faz achar que encontrar isso aqui vai mudar alguma coisa? Você vai sair daqui e vai procurar o próximo lugar exótico para postar, não vai?"
Sua franqueza me incomodava, mas havia algo de reconfortante na maneira como ele dizia as coisas. Como se ele tivesse uma compreensão mais clara do que realmente importava, e eu estivesse apenas patinando em torno de uma verdade desconfortável.
"Talvez," murmurei, sem saber se estava falando para ele ou para mim mesma.
Ele pegou um livro de trás do balcão e começou a folhear as páginas sem pressa. "Você pode tentar ficar aqui o tempo que for, mas nada vai mudar se você não parar de buscar respostas fora de si mesma."
Eu o encarei, tentando entender o que ele queria dizer. A verdade era que, naquele momento, ele tinha tocado em algo profundo, algo que eu não queria admitir.
O café esquentou minha garganta, mas o peso da conversa parecia ainda mais denso. O que se seguia seria uma batalha comigo mesma. Será que eu realmente poderia ficar fora da internet, sem a constante validação que a acompanhava? E, se conseguisse, quem seria eu então?
Rafael, como se soubesse da tempestade de perguntas que se passava na minha cabeça, soltou um suspiro e se levantou. "Acho que você vai precisar de mais tempo do que pensou, Clara."
Eu sorri sem humor, sem saber ao certo o que mais dizer. "Talvez."
Enquanto Rafael limpava a mesa, uma tensão desconfortável se formava entre nós. Eu não sabia bem o que pensar sobre ele. Por um lado, ele estava certo sobre muitas coisas. Ele parecia ver através de mim, perceber a insegurança escondida atrás da fachada. Por outro lado, sua postura de julgamento me irritava. Era difícil de engolir, especialmente vindo de alguém que claramente não se importava com nada além da sua própria existência isolada.
Depois de um longo silêncio, finalmente arrisquei uma provocação, apenas para quebrar a tensão.
"Então," comecei, minha voz mais suave do que eu gostaria, "o que você faz quando não está em seu cantinho de sabedoria, despejando sarcasmo sobre os outros? Tem hobbies ou é só isso?"
Rafael não se deixou abalar, mas a ponta de um sorriso apareceu no canto de sua boca. Ele sabia que eu estava tentando provocá-lo, e, como se tivesse se divertido com a tentativa, respondeu com um tom mais afiado.
"Eu sou o tipo de pessoa que prefere fazer algo real do que passar o dia mostrando para os outros o que está fazendo. Você devia tentar um pouco disso."
A provocação estava no ar, como uma faísca prestes a incendiar algo mais intenso, mas, ao invés de uma resposta, senti uma irritação crescente em meu peito. Cada palavra dele era como um espinho, e eu não sabia se queria me defender ou me afastar.
Eu sabia que ele estava certo, de certa forma. Estava cansada de ser observada, cansada de buscar validação em cada pequena ação. Mas o que Rafael não sabia — e talvez nem eu mesma soubesse direito — era que a parte de mim que vivia para ser vista ainda não estava pronta para desaparecer.
"Você é só mais um desses que acha que o mundo deve ser vivido offline," respondi, tentando manter a compostura. "Mas se você pensa que estou aqui para aprender como ser uma versão mais simples de mim mesma, você está redondamente enganado."
Rafael deu de ombros, mas seu olhar não deixava de ser provocante. "O que você quiser, Clara. Só não venha depois me dizer que não avisei."
E, com isso, ele virou de costas, indo arrumar outra prateleira do mercado, deixando-me ali, no meio da provocação e da frustração. Eu não sabia o que mais esperar daquela conversa. Ele tinha me desafiado, mas não de uma maneira fácil de se lidar. Eu queria retribuir, gritar que eu podia ser quem eu quisesse, mas, no fundo, algo dentro de mim estava começando a questionar: Será que eu sabia mesmo quem era sem tudo isso?
Saí do mercado sem mais palavras. Eu não tinha resposta para Rafael, mas a provocação dele continuava ecoando na minha mente, mais forte do que qualquer "like" ou comentário que pudesse receber na internet.