Passei o fim de semana inteiro afogada nas minhas próprias lágrimas, ignorando qualquer ligação do mundo lá fora. Mas, quando a segunda-feira chegou, percebi que chorar não ia pagar aluguel nem me dar um emprego.
Acordei cedo, fiz o checkout do hotel e fui atrás de uma casa para alugar. Ingênua. Ninguém me avisou que, em cidade grande, até respirar custa caro. — Me desculpa, só pra confirmar… — tento, incrédula. — Esse valor aqui é mensal, mas pra fechar, preciso pagar mais três meses adiantados? — Isso. Aceita ou sai. Tem gente na fila. — o síndico responde, sem nem fingir empatia. Engoli o nó na garganta. Não tinha opção. — Tá… tudo bem. Hoje à noite eu trago. — Largo minha mala no meio do apartamento vazio, fingindo que era meu. Saí dali sem saber como. A única esperança era aquela entrevista que consegui. E, sim, eu sabia que era surreal, ridículo, quase cômico… mas meu plano era simples: convencer eles a me pagar três meses adiantados no primeiro dia. Talvez eles rissem da minha cara. Talvez eu risse junto, de tão absurda que era a ideia. Mas era isso ou a rua. Cheguei na empresa uma hora depois. O diretor de RH, um homem de meia-idade com cara de quem se acha mais bonito do que realmente é, me chamou para a sala. — Ayla, certo? — sorri, mostrando os dentes muito brancos, provavelmente de lente. — Seja bem-vinda. — Obrigada. — Respondi, tentando parecer profissional, mesmo com a voz meio trêmula. A entrevista começou normal. Até que ele começou a me olhar de cima a baixo, mordendo os lábios como se eu fosse um prato de comida. — Você… é muito bonita, sabia? — sorriu, claramente achando que estava sendo sutil. — Tenho certeza de que você se daria muito bem aqui. — Prefiro que foquemos nas minhas habilidades, senhor. — Falei seca, cruzando os braços. — Comentários pessoais não são bem-vindos. Ele fingiu uma tosse, ajeitou a gravata, mas não demorou nem trinta segundos pra voltar a ser um completo lixo humano. — Sabe… — se inclinou na mesa, abaixando a voz — acho que podemos chegar a um acordo. Meu estômago virou. — Olha… — respirei fundo, reunindo a pouca dignidade que me restava — na verdade, eu queria saber se existe alguma possibilidade de adiantamento. Uns... três meses, talvez? Eu sei que é fora do normal. Eu mesma acho isso absurdo. — Ri, nervosa. — Mas estou passando por uma situação bem complicada. Preparei-me pra ouvir um “claro que não”, seguido de risadas. Só que ele me surpreendeu: — Isso... é possível, sim. — respondeu, abrindo um sorriso estranho. — Claro... se você for uma funcionária disposta. Meus olhos se arregalaram. Algo me dizia que “disposta” não significava exatamente trabalhar horas extras. — Me explica melhor isso. — minha voz saiu fria. Ele deslizou a cadeira, relaxando como quem dá um golpe certeiro. — Dormir comigo, Ayla. Hoje. E você tem três meses pagos adiantado. Por dois segundos, fiquei em choque. No terceiro, levantei e... PLAFT! A palma da minha mão estalou no rosto dele com força suficiente pra ecoar no prédio inteiro. — Escroto nojento! Saí dali batendo a porta, tremendo de ódio. O peito ardendo, os olhos marejados... mas eu não ia chorar. Não por um lixo como aquele. Caminhei sem rumo, chutando pedras, folhas, até que uma folha de jornal voou e grudou no meu rosto. Arranquei irritada... mas congelei quando li o anúncio estampado bem no centro: “Procura-se babá. Salário acima da média. Moradia inclusa.” Por um segundo, o universo parecia ter dado um sinal. — Ok… minha chance. — Sussurrei, apertando o papel nas mãos. Duas horas depois, parei na frente do endereço. Meus olhos quase saltaram. Uma mansão. Enorme. Impecável. Com jardim, fonte e cercas brancas. — Uau… — engoli em seco. — Eu não pertenço aqui. — Veio pra entrevista? — um homem bem alinhado me abordou. Assenti e ele me guiou até a sala. A cena quase me fez rir — nervosa, claro. Uma fila de mulheres, todas lindas, produzidas, parecendo saídas de uma revista de moda. Sentei, tentando não parecer tão deslocada quanto me sentia. E fingi naturalidade, mesmo apertando o papel do anúncio com tanta força que ele quase rasgou. Quando fui chamada, respirei fundo e entrei. E quase caí pra trás. Ele estava de costas, olhando a vista pela janela. Quando se virou, meu corpo inteiro gelou. Era ele. O homem do táxi. O cara mais irritante, esnobe e petulante que eu já conheci na vida. Eu respirei fundo. Queria correr. Mas, sinceramente? Talvez... talvez morar na rua fosse pior. — Seria muito difícil entregar seu currículo? — a voz dele soa carregada de ironia. Respiro fundo, caminho até a mesa e estendo meu currículo. Ele pega, analisa por alguns segundos, e dispara: — Você não fez a melhor faculdade. — Não levanta os olhos. — E, sinceramente, seu currículo é inferior ao das outras candidatas. Cruzo os braços, segurando a irritação. — E, mesmo assim, estamos todas concorrendo, não? Ou... existe uma faculdade de babá em Harvard e eu não sabia? Por um segundo, vejo a sombra de surpresa passar no rosto dele, como se não esperasse a resposta. — Tenho prática. Já cuidei de muitas crianças. — concluo, mantendo o tom firme. O toque estridente do meu celular quebra o silêncio constrangedor. Aperto os olhos, desligo no mesmo instante, torcendo pra não parecer mais patética do que já estava. Quando volto a olhá-lo, ele fecha o currículo com um estalo seco. — Pode sair. O mundo parece girar. Por um segundo, penso em engolir meu orgulho e implorar... mas não. Aquele dia já tinha sido humilhante demais pra eu rastejar diante de um homem tão arrogante. — Com licença. — digo, tentando manter alguma dignidade, e saio da sala. Atravesso o jardim, mastigando frustração, até ouvir um chorinho abafado. Instintivamente, olho ao redor e encontro uma garotinha sentada na grama, tentando, em vão, encaixar a perna quebrada de uma boneca. Me abaixo. — Oi... o que aconteceu? Ela levanta os olhos, enormes, verdes e cheios de lágrimas. — Eu quebrei a Dorothea... — Posso ver? — estendo a mão. Ela me entrega a boneca, e, com um pequeno encaixe, coloco a perna no lugar. — Prontinho. Tá vendo? Quase tudo na vida tem conserto. O rosto dela se acende, e, antes que eu diga qualquer coisa, ela me abraça apertado. Depois, sai correndo, feliz, girando a boneca no ar como se nada tivesse acontecido. Sorrio, desejando, do fundo da alma, que meus problemas também fossem fáceis assim. Me levanto... e, de relance, percebo a sombra de alguém se movendo atrás da cortina do escritório. Ele estava me observando. Respiro fundo, balanço a cabeça e paro de pensar nisso. Perdi a vaga, não tenho onde morar... talvez ainda consiga negociar com o proprietário. Alguma alma caridosa existe nesse mundo, certo? Volto pra casa, repetindo mentalmente mil planos de emergência, agarrada à esperança de que, chegando lá, ele tenha mudado de ideia. Só que esperança é um bicho traiçoeiro. Quando dobro a esquina, vejo. Meus pertences estão todos na calçada. Malas abertas, roupas espalhadas, caixas de livros encharcadas pela chuva fina que começa a cair. — O quê...? — minha voz sai num sussurro rouco. Corro até a portaria e começo a bater na porta. — Otávio! Abre isso! A janela do quinto andar se escancara, e ele aparece, cruzando os braços. — Você abandonou suas coisas aqui sem pagar, mocinha! Liguei mil vezes! Agora tira isso da minha calçada! — E fecha a janela, sem nem olhar pra trás. As lágrimas vêm antes que eu consiga impedir. Me ajoelho na calçada, tentando juntar o que dá. Um trovão estoura no céu. Como se fosse combinado, a chuva engrossa. Me sento, tremendo, encharcada, encarando o pouco que sobrou da minha vida. Despedaçada. — O que eu faço agora...? — sussurro, sentindo o peito apertar. — Pra onde eu vou...? O celular vibra nas minhas mãos. Por um segundo, penso em jogar ele na rua... mas atendo. — Ainda quer a vaga? — pergunta uma voz masculina, firme, do outro lado da linha. Congelo. É ele. — S-sim... — gaguejo, sem acreditar no que estou ouvindo. Silêncio. E então, direto, curto, frio: — Tem uma condição. Você precisa morar aqui.