O sol da tarde, filtrado pelas janelas altas da carpintaria, tingia o ar de um dourado pálido, iluminando partículas de poeira que dançavam lentamente. O cheiro de óleo de linho e verniz impregnava o espaço, misturando-se ao aroma de madeira envelhecida. Geoffrey estava imerso no silêncio habitual daquele refúgio, os dedos deslizando sobre o contorno de uma cadeira inacabada, quando batidas firmes na porta o arrancaram de seus pensamentos.Estranhou. Não ouvira o ronco de um motor, nem os passos na calçada. As batidas se repetiram, mais urgentes.Ao abrir a porta, deparou-se com Evelyn.Ela estava envolta em um sobretudo bege, os cabelos levemente desalinhados pelo vento, mas era o olhar que o atingiu — profundo, abatido, carregando um peso que ia muito além do cansaço.— Evelyn? — a voz dele soou surpresa com um toque de alegria. — O que está fazendo aqui?— Preciso conversar com você — respondeu ela, atravessando a soleira sem cerimônia, olhando para ele com ansiedade.
A biblioteca era o cômodo mais antigo da mansão. As paredes, cobertas por estantes de carvalho escuro, absorviam os sons como se ouvissem demais há décadas. A luz fraca das luminárias dourava o ambiente com uma sensação de nostalgia pesada.Henry, sentado em sua poltrona de couro surrado, girava lentamente o cálice de conhaque entre os dedos. Seus olhos estavam perdidos no brilho âmbar da bebida, mas sua mente vagava para lugares muito mais sombrios.A condessa, sentada em uma poltrona lendo um livro, desviou os olhos das páginas e olhou para o conde com reprovação ao vê-lo encher o copo novamente, logo depois de ter bebido todo o conteúdo anterior. Ele a olhou de volta e deu de ombros, antes de retornar aos seus próprios pensamentos, mergulhando devagar.Os acontecimentos dos últimos dias o fizeram recordar de fatos do passado que ele detestava lembrar. Como, desde sempre, soubera que sua mãe fazia distinções. Reginald era o preferido. Sempre fora. Quantas vezes, ainda menino, escut
Evelyn caminhava pelo saguão imponente das Empresas Ashbourne. O chão de mármore branco refletia a luz dourada dos lustres, e o perfume suave de flores frescas misturava-se ao som ritmado dos saltos contra a pedra.À medida que ela se aproximava da porta, esta se abriu suavemente, deixando-a entrar no espaço, onde três recepcionistas, impecavelmente vestidas e maquiadas, se voltaram para ela com sorrisos profissionais.Por um instante, Evelyn hesitou. Sentiu-se pequena naquele mundo de luxo calculado. Segurou a bolsa Tote com firmeza, reunindo toda a coragem que conseguiu, e aproximou-se do balcão.— Boa tarde, senhora. — A recepcionista inclinou-se levemente, seus dentes alvos contrastando com a pele ébano, impecável sob a maquiagem neutra. — Como posso ajudá-la?Evelyn ergueu o queixo, direto ao ponto: — Preciso falar com Lorde Reginald Ashbourne.A mulher — Kalina, lia-se no crachá — deslizou os olhos pelo vestido simples e pela bolsa de Evelyn, antes de perguntar, com polidez trei
O silêncio na biblioteca da mansão Ashbourne era denso como mármore. O velho relógio na parede marcava cada segundo com batidas secas e impiedosas. Henry, sentado confortavelmente, esperava. Sabia que Reginald viria em busca de respostas sobre a paternidade de Donovan. E ele veio — fechando a porta com um estalo firme, os olhos cortantes como navalhas.Reginald parou, observando o irmão. Notou como Henry envelhecera nas últimas semanas: os cabelos mais grisalhos, as linhas fundas no rosto. Sem pedir licença, serviu-se de uma dose de uísque e virou-se para ele.— Você sabia — disse Reginald, a voz carregada de veneno contido. — Todos esses anos, sustentando essa mentira.Henry ergueu uma sobrancelha, indiferente. — Esse assunto pertence à minha família. Eu protegeria nossa honra, custasse o que custasse — respondeu, girando lentamente o anel no dedo.Reginald cerrou os punhos.— Para todos... ou apenas para você? — cuspiu as palavras. — Você soube muito bem esconder es
Era início de inverno. Evelyn olhava pela janela, observando o vento gelado derrubar as folhas das árvores que insistiam em desafiar o tempo. Passou a mão sobre a barriga. Já completara nove meses, e o Dr. Fontex dissera que o bebê estava em posição para nascer. Ela deveria deixar tudo pronto, pois a qualquer momento ele viria ao mundo.Lembrou-se da noite em que Henry informou para os presentes o resultado do teste de DNA — a mesma noite em que vira Reginald pela última vez.Perguntava por ele a Cleice, mas as respostas eram sempre curtas e evasivas: "Está viajando a negócios." E acompanhadas de um frio conselho: "Esqueça-o."Como se fosse fácil esquecer alguém que se ama. Até mesmo Geoffrey, que antes demonstrava preocupação, agora se mantinha distante.Ainda bem que podia contar com Beth, sempre tão presente, ajudando em tudo: das compras às consultas médicas, e até nas noites em que Evelyn chorava em silêncio, sem nem saber ao certo por quê.Beth informara que p
Nos dias que se seguiram ao nascimento de Oliver, Evelyn e Reginald pareciam habitar um mundo só deles. Um mundo onde as velhas mágoas ainda existiam, mas já não eram maiores do que a esperança. Os dias corriam lentos, envoltos numa névoa suave de renascimento e descoberta.Reginald aparecia todas as manhãs, sem falhar. Trazia café quente para ela, flores frescas — às vezes um livro, às vezes só a presença silenciosa e firme. Evelyn, ainda frágil e vulnerável, aprendeu a aceitar. A confiar, um centímetro de cada vez.Era em pequenos gestos que ele a conquistava: quando ajeitava os travesseiros dela sem que precisasse pedir, quando cuidava do bebê com uma delicadeza que fazia seus olhos se encherem de lágrimas. Quando, no silêncio da madrugada, ficava ao lado dela apenas respirando, como se soubesse que ela precisava mais de companhia do que de palavras. Mas nem todos os momentos eram fáceis.Numa dessas madrugadas, Oliver acordou chorando desesperadamente, com cólicas que p
O som seco da tampa da caixa de correio se fechando chamou a atenção de Geoffrey, que estava no quarto conversando com um velho conhecido — um homem simples, assim como ele, que também não tinha família por ter dedicado a vida a servir a dos outros. Doente e solitário, o amigo agora vivia com Geoffrey, a quem ele chamava de irmão de alma.Curioso, Geoffrey se levantou da poltrona e foi até a entrada. Voltou carregando um envelope pardo, sem marca aparente, mas endereçado a ele. O remetente era desconhecido. Com as sobrancelhas franzidas, abriu o envelope cuidadosamente.De dentro, tirou duas folhas. Seus olhos se arregalaram à medida que lia o conteúdo — palavras que pareciam rasgar o véu das mentiras tecidas ao longo dos anos. No verso da segunda página, um pequeno bilhete estava colado com fita adesiva. “Espero que essa informação lhe seja útil. — De seu amigo, B.”Geoffrey reconheceu imediatamente a caligrafia. Era do novo mordomo da mansão.A primeira folha era uma
"O FUTURO ÀS VEZES CHEGA DISFARÇADO: DE CAFÉ OU DE SORRISO" C.R.SANTOS Evelyn acordou com a chuva forte batendo na janela do pequeno quarto que alugava no subúrbio de Bell Buckle, no Tennessee. Olhou as horas no pequeno relógio da mesa de cabeceira e percebeu que ainda faltava meia hora para se levantar, mas já não conseguia mais dormir. Levantou-se e foi tomar um banho.Uma hora depois, estava dentro do trem a caminho do Daisy's, uma charmosa lanchonete com estilo anos oitenta, onde trabalhava. Olhando pela janela, avistou uma mulher com duas crianças caminhando pela calçada. O grande guarda-chuva protegia os três. A menina mais nova carregava uma mochila rosa nas costas, o objeto parecia maior que ela, deixando-a um pouco curvada para frente. Órfã de pai e mãe, Evelyn nunca conheceu aquela sensação de proteção que toda mãe deveria ter po