Os dias que se seguiram foram uma mistura de expectativa e frustração. A cada visita ao asilo, Clara parecia estar mais distante, mergulhada em sua confusão mental, mas, de alguma forma, eu começava a acreditar que algo dentro dela reconhecia a minha presença. Eu era o filho que ela havia perdido, ou talvez aquele filho nunca tenha sido perdido para ela. Mas a verdade estava em algum lugar entre os silêncios e os fragmentos de memória que ela compartilhava, sem que soubesse realmente o que significava.
Em um dos meus encontros, Helena, com sua calma peculiar, comentou enquanto olhava para Clara, que dormia pacificamente na poltrona:
— Ela reconhece os sons. Às vezes, é tudo o que temos para nos lembrar do que ficou para trás. Ela vai se lembrar de você. Talvez, um dia...
Eu não sabia se aquilo era esperança ou uma tentativa de consolo. No fundo, algo dentro de mim me dizia que a verdade que eu tanto procurava não viria de Clara. Ela estava perdida demais em sua própria mente para devolver o que nunca entendi direito.
No entanto, não era apenas o passado de Clara que me intrigava. O nome que havia encontrado em um dos registros, o nome de Eduardo Camargo, começou a me assombrar de uma forma diferente. Eu sabia que ele era meu pai, o homem que nunca conheci. Mas como ele tinha me deixado em um orfanato, afastado de sua vida e de sua família? Havia algo errado com essa história.
Eu precisava de mais respostas, e logo me dei conta de que as respostas não viriam de Clara. Elas estavam em algum lugar onde as lembranças de Eduardo estavam guardadas, e talvez na mulher que compartilhava seu sobrenome: Isadora Camargo.
Eu havia ouvido falar dela antes, mas nada me preparava para o encontro que viria a seguir.
Decidi procurá-la.
Fui até o endereço de uma das empresas de Eduardo, uma imponente construção no centro da cidade, cheia de escritórios reluzentes e corredores frios. O nome "Grupo Camargo" brilhava em letras douradas na fachada. No interior, tudo parecia perfeito, impecável, como se fosse uma máquina em funcionamento sem qualquer falha. Mas, por dentro, eu estava vazio. Eu não sabia o que esperava encontrar ali, mas algo me dizia que essa era a única chance de entender a verdade.
Cheguei à recepção, onde uma funcionária com cabelos bem arrumados e sorriso automático me perguntou como poderia ajudar. Respondi com a maior clareza possível.
— Gostaria de falar com Isadora Camargo. Ela é minha irmã.
A mulher olhou para mim com uma expressão fria, mas não disse nada. Ela se afastou para falar com alguém nos bastidores. Minutos depois, uma mulher alta, de cabelos escuros e postura imponente, apareceu na recepção. Seu olhar percorreu-me de cima a baixo com um interesse calculado, mas não amigável.
— Você é... Gabriel? — Ela perguntou, sua voz era firme, mas com algo de desprezo. — O que você quer aqui?
Eu tentei esconder o nervosismo, mas não pude evitar que minha voz tremesse um pouco ao falar.
— Eu sou filho de Eduardo Camargo. Fui deixado no orfanato. Eu queria entender o que aconteceu... por que fui abandonado.
A expressão de Isadora mudou ligeiramente. Ela olhou para mim com algo entre o ceticismo e a surpresa. Por um momento, fiquei parado, esperando por uma reação. Ela cruzou os braços e permaneceu em silêncio, observando-me como se estivesse analisando uma peça de um quebra-cabeça que não se encaixava.
— O que você está dizendo é... impossível. Meu pai nunca teve um filho fora do casamento. Isso não faz sentido. — Ela afirmou com uma firmeza quase assustadora.
As palavras dela caíram sobre mim como um balde de água fria, mas eu não podia recuar agora. A dor de ser rejeitado por toda a minha vida, agora somada a essa negação da parte de minha própria irmã, era quase demais para suportar.
— Eu tenho provas. — Eu disse, tentando me controlar. — Eu tenho documentos, fotos e até um exame de DNA. Quero apenas saber a verdade. Eu tenho direito a ela.
Isadora me olhou com algo entre desprezo e tédio, antes de fazer um gesto impaciente com a mão.
— Você tem sorte de estar aqui. Não tenho tempo para isso. Mas vou chamar meu advogado. Ele cuidará disso. Saia da minha vista.
Eu senti a raiva crescendo dentro de mim. Como ela podia ser tão insensível? Como podia negar sua própria carne e sangue de uma maneira tão cruel? Mas eu sabia que não podia lutar contra ela naquele momento. Saí da sala sem olhar para trás.
Com o coração pesado e a mente cheia de questões, voltei para o asilo. Helena estava lá, e seu sorriso parecia trazer um pouco de paz naquele turbilhão de emoções. Sentei-me ao seu lado, mas nada parecia real naquele momento.
— Eu tentei. Mas ela não acredita em mim. Ela me chamou de mentiroso, Helena. Ela não quer saber a verdade. Não me reconheceu.
Helena pousou a mão sobre a minha, de forma reconfortante.
— Não desista. A verdade sempre encontra um jeito de aparecer, mesmo quando as pessoas não querem vê-la.
Mas o que mais me incomodava era o silêncio de Clara. Ela continuava ali, frágil e silenciosa, mas com aqueles olhos que pareciam me guardar em algum lugar profundo, onde o tempo e as palavras não alcançam. Será que ela sabia de algo que eu não entendia?
Eu não sabia, mas sabia de uma coisa: a batalha estava apenas começando.
Após minha conversa com Isadora, algo dentro de mim mudou. Eu havia sido rejeitado mais uma vez. Minha própria irmã, aquela que poderia ser minha única ligação com o passado, me tratou como se eu fosse uma invenção, uma farsa. Mas, apesar de tudo, uma parte de mim não acreditava nas palavras dela. Algo dentro de mim me dizia que a verdade estava mais perto do que eu imaginava, e eu não podia parar agora. Não depois de tudo o que já tinha descoberto. Não depois de tudo o que ainda estava por vir. Eu voltei ao asilo naquele dia, e Helena estava lá, como sempre, pronta para me apoiar. Ao me ver, ela não precisou perguntar. O olhar triste e cansado que eu tinha já dizia tudo. Eu sabia que o encontro com Isadora não havia dado certo, mas Helena não fez questão de pressionar. Ela apenas me envolveu em um abraço apertado, oferecendo o consolo silencioso que tanto precisava. — Eu sabia que seria difícil, mas não podemos desistir. — Ela disse, com a voz suave, como se tentasse me acalmar com
O dia seguinte foi de silêncio. Um silêncio pesado que pairava no ar, como se o asilo, a cidade e o mundo inteiro estivessem aguardando algo. Após a estranha interação com Clara, eu não conseguia parar de pensar nas palavras dela. "Você... voltou para mim..." Havia algo profundamente familiar e ao mesmo tempo inquietante nessa frase. Clara não era apenas a mulher que cuidava de uma vida perdida; ela parecia carregar dentro de si uma chave para tudo o que eu precisava entender sobre mim, sobre minha história, sobre minha mãe e, especialmente, sobre meu pai, Eduardo Camargo. O amanhecer trouxe uma sensação de urgência, como se o tempo estivesse se comprimindo, apertando cada vez mais meu peito. Eu sabia que algo estava prestes a acontecer. Uma revelação, uma descoberta, uma virada de jogo. A pergunta que me martelava a mente era: por que Clara, que havia estado tão distante e distante de mim, parecia finalmente me reconhecer? No entanto, não tinha tempo para me perder em dúvidas. O ad
O relógio na parede do escritório de meu advogado parecia ecoar a cada segundo que passava. Eu estava sentado ali, com as mãos suando, sentindo que algo muito maior do que eu poderia imaginar estava prestes a ser revelado. A descoberta do exame de DNA e a confirmação de que Eduardo Camargo era meu pai haviam sido um choque. Mas a menção ao segredo no testamento, àquela cláusula que mencionava algo sobre meu nascimento, foi o que realmente me desestabilizou. Eu sabia que não podia esperar mais. A verdade que Eduardo havia escondido estava lá, em algum lugar, à espera de ser desenterrada. Mas onde eu procuraria? O que ele teria feito para garantir que ninguém descobrisse o que ele não queria que fosse revelado? O advogado me entregou uma nova pilha de documentos, mas eu estava tão absorvido em meus próprios pensamentos que não consegui me concentrar no que estava ali. Ele percebeu a distração e, sem dizer uma palavra, se levantou e se afastou. Eu estava sozinho novamente, mas não me s
A noite caiu rapidamente sobre a cidade, e as luzes fracas das ruas mal conseguiam iluminar a escuridão que agora parecia me cercar. O que Clara dissera reverberava em minha mente, mas eu não sabia como seguir em frente. A verdade estava, de algum modo, escondida em algo que eu não conseguia alcançar. O segredo de Eduardo ainda estava no ar, entre o que ela sabia e o que ela não podia me dizer. Eu me sentia como um caça às sombras, procurando algo que talvez nem existisse. Aquelas palavras de Clara – "A verdade está onde você nunca imaginou" – ficavam me assombrando, mas eu não sabia de onde começar. O que ela queria dizer? O que ela sabia que eu ainda não entendia? De volta ao meu apartamento, a sensação de impotência tomou conta de mim. Eu não tinha mais respostas, apenas perguntas. O que mais poderia acontecer? Eu precisava de mais pistas, algo mais tangível que me levasse a um caminho mais claro. O telefone tocou novamente, e o som cortante me fez saltar da cadeira. Era um núme
A tarde estava fria, e a casa do asilo, onde minha mãe Clara agora morava, parecia envolver-se em um silêncio que ecoava pelos corredores. Eu já me acostumara com essa paz, com o ritmo lento e constante que os idosos seguiam. Mas, naquele dia, algo estava diferente. Algo em mim sentia que aquela visita seria especial. Clara havia ficado mais calada nas últimas semanas, e suas memórias, antes fragmentadas, pareciam agora tão distantes quanto as montanhas que cobriam a cidade.Ela não me reconhecia de imediato, mas, quando me viu entrar, seus olhos brilharam por um breve momento. Uma fração de segundo que me fez acreditar que algo dentro dela ainda estava acordado, ainda estava esperando por uma resposta. Ela me olhou e, como sempre, disse algo que não fazia sentido: "Meu filho, venha aqui. Eu preciso te mostrar algo".Segui-a, embora eu soubesse que ela talvez nem se lembrasse do que estava prestes a revelar. Acompanha-la até o quarto sempre foi um ritual, um passeio silencioso onde as
A luz da manhã entrava pela janela do asilo como se dançasse lentamente no ar, tocando os lençóis brancos da cama de Clara. Ela dormia tranquila, o rosto suavizado pelo repouso, os cabelos grisalhos espalhados como seda sobre o travesseiro. Eu a observava em silêncio, sentado na poltrona ao lado, com uma caneca de chá ainda quente entre as mãos.Era difícil descrever o que eu sentia. Ela parecia tão frágil, tão distante do mundo real, e ao mesmo tempo era a única conexão verdadeira que eu tinha com o passado. O que me mantinha ali, visitando-a todos os dias, não era apenas a esperança de ouvi-la me chamar de "filho" — era algo mais profundo. Era o medo de que, se eu não estivesse ali, ninguém mais se lembraria de quem ela fora um dia.— Ela teve uma boa noite — disse Helena, aproximando-se suavemente, como sempre fazia, com aqu
Depois daquela manhã estranha e reveladora, não consegui pensar em mais nada. A frase da minha mãe ecoava repetidamente na minha cabeça como uma melodia incompleta: “Ele escondeu tudo… no baú azul… no fundo do armário… atrás das cortinas.” Foram palavras desconexas, soltas como peças de um quebra-cabeça antigo, mas eu sentia que, de algum jeito, faziam todo o sentido. Algo dentro de mim dizia que aquilo não era apenas delírio.Voltei ao orfanato naquela mesma tarde, inquieto, o coração acelerado como se uma resposta estivesse prestes a surgir das sombras do passado. Observei cada canto do prédio com outros olhos, buscando armários esquecidos, cortinas grossas, qualquer indício de algo que se encaixasse na descrição.Era estranho. Eu havia crescido ali. Conhecia cada rachadura nas paredes, cada azulejo solto do banheiro, cada de
Passei a noite inteira acordado. As cartas, a certidão, o baú… tudo estava agora guardado em uma caixa de sapato velha, escondida debaixo da minha cama. Cada vez que fechava os olhos, via o nome "Gabriel Antunes de Vasconcelos" brilhando diante de mim como uma marca em fogo.Aquela certidão mudava tudo. Mas, ao mesmo tempo, parecia abrir mais perguntas do que respostas. Por que um homem tão poderoso teria um filho escondido em um orfanato? Por que minha mãe jamais me contou? E o mais importante: ele sabe que eu existo?Na manhã seguinte, tentei agir normalmente. Fui ajudar na cozinha, arrumei os brinquedos do pátio, sentei com os pequenos para as atividades do dia. Mas estava distraído. Helena percebeu.— Vai acabar cortando o dedo se continuar olhando para o nada assim — ela disse com um sorriso leve, estendendo um pano de prato.Eu larguei a faca e limpei as mãos. Ela se sentou ao meu lado, sobre uma das mesas vazias da cozinha, como quem esperava por uma conversa.— Você está difer