Capítulo 3

Guilherme

Quando acordei naquela manhã, estava certo de que seria só mais um dia comum de visitas, risadas e reuniões de família. Desci as escadas, ainda meio sonolento, e percebi que havia algo preso no portão. Uma folha de papel dobrada, simples, mas que carregava um detalhe que não passou despercebido: um perfume suave, doce, que ficou no ar assim que toquei.

Curioso, desdobrei o papel ali mesmo, de pé, sentindo um aperto estranho no peito antes mesmo de ler qualquer palavra.

"Querido Príncipe, você não sabe, mas hoje você foi meu herói. Obrigada por existir. Eu te admiro mais do que qualquer um nesse mundo..."

Li. Reli. Três... quatro vezes.

No começo, sorri achando que fosse alguma brincadeira dos meus irmãos mais novos, sempre prontos para me sacanear. Mas, conforme fui absorvendo cada palavra, percebi que aquilo não era uma piada. Era sincero. Puro.

Senti o peito apertar de um jeito bom, estranho, diferente. Alguém, em algum canto dessa cidadezinha, me via com olhos que nem eu sabia merecer.

Guardei a carta no bolso, sorrindo sozinho, e durante aquele dia inteiro, vez ou outra, colocava a mão ali, só pra ter certeza de que ela ainda estava comigo.

E achei que fosse só isso. Um gesto único. Uma coincidência bonita. Mas não...

No outro dia, lá estava ela de novo. Uma nova folha. Outro perfume. Outra letra um pouco tremida, mas cheia de cuidado.

"Príncipe... você nem imagina como seu sorriso ilumina tudo à sua volta. Você é especial. Nunca duvide disso."

Meu Deus... Quem era?

Comecei a observar mais. A olhar as pessoas na rua, nas praças, nas reuniões de família. Cada olhar que cruzava comigo me deixava desconfiado. Seria aquela garotinha tímida da casa ao lado? A moça da padaria? Alguém da escola, mesmo que eu nem frequentasse mais ali?

E assim se seguiu. Todos os dias, uma nova carta. Uma mais doce que a outra.

"Hoje eu te vi passando e meu coração quase saiu pela boca. Obrigada por existir no mesmo mundo que eu."

Aquilo foi me desconcertando de um jeito que eu não imaginava ser possível. Nunca fui de me achar alguém especial, apesar de ouvir elogios pela minha escolha, pelos estudos, pela vida fora daqui. Mas aquelas palavras... elas me tocavam de um jeito diferente. Eram sinceras. Limpas. Ingênuas.

Comecei a esperar. Sim... esperar pelas cartas. Era abrir os olhos de manhã, olhar pro portão e sorrir só de ver aquele papel dobradinho, com aquele cheiro inconfundível.

E, de repente, percebi que eu estava andando mais pela cidade, olhando rostos, tentando descobrir de onde vinha aquele carinho tão... raro.

Mas o tempo, esse cruel, não para pra ninguém. Minha passagem de volta estava marcada. Precisava retornar para Nova York. A universidade me esperava.

No meu último dia, ao acordar, encontrei uma carta diferente. O envelope era rosado, mais caprichado, e o perfume parecia mais forte, como se quem tivesse deixado quisesse que aquele cheiro nunca fosse esquecido.

"Príncipe... sei que você vai embora. E talvez nunca descubra quem eu sou. Mas quero que saiba que você fez meus dias mais felizes, só por existir. Você me inspira. E, mesmo de longe, sempre terá alguém aqui que te admira em silêncio."

Sentei no banco da varanda, segurei aquela carta com mais força do que qualquer outra coisa, e, pela primeira vez, senti um nó na garganta.

Sorri. Um sorriso triste, mas grato. E, antes de entrar pra terminar de arrumar minhas malas, guardei todas as cartas dentro de um dos meus livros. Não teria coragem de deixá-las pra trás.

Naquele dia, enquanto o avião decolava e a cidadezinha sumia pela janela, percebi que, de algum jeito, eu também estava deixando um pedaço do meu coração em Sacutinga.

Mal sabia eu... que aquele seria apenas o primeiro capítulo de uma história que a vida, caprichosa como é, ainda faria questão de continuar escrevendo.

O som do bip parecia não parar. E, na verdade, não parava mesmo. Mais um chamado. Mais um trauma chegando. E eu, Guilherme Borges, residente de ortopedia, já não sabia se respirava, corria ou simplesmente aceitava que aquele plantão seria mais puxado que qualquer outro.

— “Atendimento de politrauma na sala vermelha!” gritou uma das enfermeiras, e eu já estava colocando as luvas antes mesmo de terminar de ouvir.

— “Bora, Gui!” chamou Leonardo, meu parceiro de residência, um cara meio marrento, mas gente boa. — “Hoje o bicho tá pegando!”

— “Quando não tá, né?” respondi meio rindo, meio exausto, ajustando a máscara no rosto.

Entramos na sala. Um homem de uns 40 anos, vítima de um acidente de moto, chegava com fratura exposta na tíbia, possível luxação no ombro e cortes profundos no rosto.

— “Vasculhar cervical, checar via aérea, estabilizar fratura...” disparei, enquanto a equipe já se organizava. Ao meu lado, além de Leonardo, estava Clara, rápida, focada, uma das melhores do nosso grupo.

— “Gui, segura aqui o alinhamento!” ela pediu, posicionando a perna do paciente. Eu fiz a tração enquanto ela preparava o material para a imobilização provisória.

Nem bem terminamos, outro chamado no rádio:

— “Chegando vítima de queda de telhado, possível fratura de fêmur e suspeita de trauma craniano.”

— “Leonardo, vai pra sala dois! Clara, comigo aqui.” ordenei, respirando fundo.

O tempo parecia correr de um jeito estranho dentro daquele hospital. Mal piscava e já estava em outra sala, outro paciente, outro desafio.

Foram mais quatro fraturas, dois politraumas e uma criança com fratura no antebraço em menos de três horas.

Quando o relógio marcou meia-noite, finalmente consegui parar, sentar na copa, abrir um pacote de biscoito qualquer e tomar um café que já parecia ter sido passado há dois dias.

— “Cara... que plantão, hein?” bufou Leonardo, largando o corpo na cadeira, todo sujo de sangue (não dele, graças a Deus).

— “Parece que abriram um portal do inferno só pra gente hoje.” completou Clara, jogando a touca sobre a mesa e passando a mão nos cabelos bagunçados.

Dei uma risada cansada, bebendo mais um gole do café frio.

— “E a cereja do bolo ainda tá vindo.” falei, levantando o celular e mostrando a tela. “Prova de ortopedia geral na segunda. Se não passar, tô ferrado.”

— “Aff... nem fala. Preciso revisar fixadores externos, classificação de fratura, osteossíntese...” Leonardo revirou os olhos.

— “Eu nem cheguei na parte de complicações ainda.” resmungou Clara, batendo de leve a cabeça na mesa.

Suspirei fundo, olhando pro relógio. Ainda tinha quatro horas de plantão, depois algumas horas pra dormir se desse, e então encarar os livros de novo.

— “É... bora aproveitar que deu uma trégua e estudar. Porque traumatismo a gente já tá craque, agora falta a prova.” falei, pegando meu caderno.

Leonardo riu.

— “Tu é maluco, Guilherme Borges. Mas, vamo nessa. Bora ser doutor.”

Sorri de canto, meio cansado, meio orgulhoso. Porque, no fundo, apesar de tudo, eu sabia que era exatamente isso que eu tinha nascido pra fazer.

E, vez ou outra, quando o plantão dava um suspiro, minha mão ia sozinha até aquele livro velho que sempre estava na minha mochila. No meio dele, guardadas como um tesouro, estavam aquelas cartinhas perfumadas, que nem o caos dos traumas, nem as provas, nem a correria da vida conseguiam me fazer esquecer.

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