Estela
8 Anos antes...
Eu tinha apenas onze anos quando tudo na minha vida mudou. Foi quando nos mudamos para Sacutinga, uma cidade pequena, charmosa, mas completamente desconhecida para mim. Minha mãe dizia que aqui ela tinha raízes, que este lugar fazia parte da sua história.
A verdade? Eu só queria sumir.
Magrela, com óculos enormes, aparelho nos dentes e sempre carregando mais livros do que amigos, eu era o alvo perfeito para as piadinhas das crianças. No primeiro dia de aula, já fui recebida com risadas maldosas e apelidos que me faziam querer cavar um buraco e me esconder lá dentro.
— “Quatro-olhos!”
— “Olha o sorriso de lata!” — “Seca que nem um graveto!”Segurava o choro até chegar em casa. E foi exatamente aí que descobri o que era me sentir invisível
e, ao mesmo tempo, profundamente sozinha.
Mas nem tudo em Sacutinga era dor. Minha família tinha uma forte ligação com o padrinho do meu irmão Luca, e isso me levou a conhecer uma das pessoas mais incríveis da minha vida: Guilherme.
Ele era um dos cinco filhos do padrinho do Luca. O segundo mais velho, se não me engano. E, sinceramente, o mais bonito de todos. Ele não morava mais na cidade, havia conseguido uma bolsa para estudar medicina na Columbia University, nos Estados Unidos. Então, eu só ouvia falar dele... até aquele Natal.
Naquele dia, a casa estava cheia, decorada, com cheiro de comida boa e som de risadas vindas de todos os cantos. Eu estava meio perdida, quieta, sentada na beirada da varanda, quando o vi.
Ele estava diferente de todo mundo. Tinha uma postura elegante, um jeito calmo de falar, educado, inteligente... parecia não caber ali. Usava uma camisa social dobrada até os cotovelos, calça escura, e os cabelos estavam levemente bagunçados, daquele jeito que parece despretensioso, mas que deixa qualquer garota boba.
Fiquei hipnotizada. Meus olhos simplesmente não conseguiam desgrudar dele.
E quanto mais ele falava sobre a faculdade, sobre os desafios e as coisas que aprendia, mais eu me apaixonava não só por ele, mas também pela forma como ele via o mundo. Eu nem sabia direito o que significava ser médico, mas, pelos olhos dele, parecia ser algo simplesmente mágico.
Na maior parte do tempo, eu o observava de longe, tentando não ser percebida. Cada detalhe dele me encantava. A forma como sorria, como ajeitava a manga da camisa, como mexia no cabelo distraidamente enquanto ouvia alguém falar...
Porém, nem tudo era encantamento. Em um dos momentos em que estava distraída observando-o, dois meninos da escola se aproximaram.
— “Olha lá... até aqui tá sozinha... Deve ser porque ninguém quer ficar perto de uma esquisita assim.” zombaram, me empurrando de leve.Eu abaixei a cabeça, apertando os olhos para segurar o choro, mas antes que eles pudessem continuar, uma voz grave, firme e séria cortou o ar:
— “Chega. Vocês dois, sumam daqui antes que eu fale com os pais de vocês. Isso não é jeito de tratar ninguém.”Levantei o olhar devagar e lá estava ele. Guilherme. De braços cruzados, expressão dura, protegendo... a mim.
Os meninos se entreolharam, sem graça, e saíram apressados, resmungando qualquer coisa. Meu coração parecia que ia explodir.
Ele então se abaixou até a minha altura, e seus olhos ficaram suaves de novo.
— “Tá tudo bem?” perguntou, e meu cérebro travou.— “Tá...” murmurei, encolhendo os ombros, sentindo meu rosto queimar.
Ele sorriu de canto.
— “Não liga pra eles, não. Eles não sabem de nada.” piscou, bagunçando de leve meus cabelos. — “Você é uma gracinha, bonequinha.”Bonequinha. Meu Deus... ele me chamou de bonequinha.
Naquele exato momento, eu soube que o que eu sentia não ia passar. E que, dali em diante, meu coração teria um dono... mesmo que ele jamais soubesse disso.
Foi naquela noite, escondida no meu quarto, que tive uma ideia. Peguei uma folha de papel colorida, borrifei meu perfume, caprichei na letrinha, mesmo que ainda parecesse de criança e escrevi a primeira de muitas cartas.
“Querido Príncipe, você não sabe, mas hoje você foi meu herói. Obrigada por existir. Eu te admiro mais do que qualquer um nesse mundo...”
Não assinei, claro. Como poderia? Era só uma criança... E ele... ele era o homem dos meus sonhos.
A partir desse dia, sempre que ele estava na cidade, uma nova cartinha aparecia no portão da casa dele. Sempre anônima, sempre perfumada, sempre cheia de amor.
Ele nunca soube quem era. E eu... nunca deixei de amá-lo.
Na manhã seguinte, acordei com o coração disparado, como se tivesse corrido uma maratona durante a noite inteira. A primeira coisa que fiz foi olhar pela janela, tentando, de alguma forma, ver se ele tinha encontrado a carta.E se ele achasse boba? E se risse? E se descobrisse que era eu? Meu Deus... que vergonha!
Passei o dia inquieta. Não conseguia me concentrar em nada. Enquanto minha mãe falava sobre as sobras do Natal, sobre arrumar a casa, sobre levar algumas coisas para a casa da comadre, eu só pensava em uma coisa: Guilherme.
No final da tarde, criei coragem para passar em frente à casa do padrinho do Luca. Fingindo que estava indo comprar pão, caminhei lentamente pela calçada, olhando discretamente para o portão.
Meu coração quase parou quando vi... Ele estava lá. Sentado no banco da varanda, com uma das pernas cruzadas, segurando... a carta.
Ele lia. Sério. Concentrado. Passava os dedos devagar sobre o papel, como se tentasse desvendar quem tinha escrito aquilo.
Por um segundo, achei que ele ia olhar pra rua, me ver e descobrir tudo. Me escondi atrás de um poste, segurando a respiração, o rosto queimando mais do que o sol das três da tarde.
E então, aconteceu algo que eu nunca vou esquecer. Ele sorriu. Um sorriso de canto, meio desacreditado, meio encantado... E guardou a carta no bolso da camisa, bem pertinho do coração.
Naquele instante, percebi que, mesmo que ele nunca soubesse que era eu, de alguma forma, eu tinha conseguido fazer parte do mundo dele. Nem que fosse só um pedacinho... escondido, secreto... mas meu.
Mal sabia eu que aquela cartinha, tão inocente, seria o início de uma história que eu jamais esqueceria.
Porque o destino... ah, o destino gosta de brincar com a gente.
E essa história... estava só começando.