O relógio da galeria marca nove da noite quando tia Helen anuncia que os quartos foram “preparados conforme o testamento”.
Quartos, plural. Pelo menos é o que eu quero acreditar. Mas quando subo a escada, cada degrau parece um prenúncio, e cada batida do meu coração confirma o que eu temo desde a leitura do documento: Há uma única suíte principal em Valenhart Manor. E, segundo o advogado, “coabitação harmônica” significa exatamente isso. A porta se abre com um estalo lento. O quarto é o mesmo de dez anos atrás, o mesmo teto alto, o mesmo tapete persa, a mesma cama de dossel que foi palco de beijos, brigas e promessas que ninguém cumpriu. A diferença é o homem encostado na moldura da janela, as mãos nos bolsos e a postura de quem ainda acredita que o controle é uma armadura. Adrien. — Não se preocupe — ele diz, antes que eu respire. — Mandei preparar o sofá. — Que cavalheiro — a ironia me escapa. — Acha mesmo que eu aceitaria dividir essa cama com você? — Não. — ele responde, e o olhar que lança sobre mim é quase um toque. — Acho que você ainda se lembra demais dela. O ar fica denso. Acho que o tapete se move de leve, ou é só meu corpo vacilando. — Eu me lembro de tudo. — digo, firme. — E é justamente por isso que não quero repetir nada. Ele dá um passo. E depois outro. O perfume dele me alcança. — Engraçado. Você sempre disse que queria respostas. Agora que estamos cara a cara, não quer ouvir nenhuma. — Quando eu quis conversar, você me abandonou vestida de noiva. Silêncio. Não o vazio. Um tipo de silêncio que tem temperatura e cheiro, o de algo prestes a acontecer. Adrien me observa como quem tenta lembrar um idioma que já dominou e esqueceu. Eu desvio o olhar, mas ele continua parado, perto o suficiente para que meu pulso me denuncie. — Não é tão simples quanto você faz parecer, Lívia. — a voz dele baixa, rouca. — Nenhum de nós saiu inteiro daquela história. — Não tente me comover. Você me quebrou e depois me enterrou viva junto com o seu orgulho. Ele se aproxima mais um passo, e o tom muda, menos arrogância, mais provocação. — E você voltou mesmo assim. — Pelo testamento. — Claro. — ele sorri de lado. — Só por isso. — Não imagine outra coisa. — Não preciso imaginar. — ele passa os dedos pela manga da minha blusa quando cruza por mim, a caminho da cama. — Está tudo aqui. Meu corpo reage antes da minha mente. Um arrepio sobe como fogo sob a pele. Viro o rosto, forçando o ar a sair pelos pulmões. — Está sonhando se acha que ainda tem esse poder. — Sonhando, não. — ele diz, encostando a jaqueta no encosto da poltrona. — Lembrando. O olhar dele para mim é o mesmo de antes. Intenso, insolente e absurdo. Aquele olhar que dizia tudo o que as palavras nunca deram conta. E eu odeio o fato de que meu corpo ainda entende a língua que ele fala sem som. — Vá dormir no sofá, Adrien. — tento encerrar. — O sofá tem molas quebradas. — ele tira o relógio do pulso. — Não seria uma boa noite para ninguém. — Então ache outro lugar. Há dezenas de quartos nessa casa. Ele se aproxima, encurtando a distância que eu tento manter. — Mas só um testamento. — diz, a voz mais baixa. — E ele exige convivência. — Conviver não é deitar na mesma cama. — Depende da definição de harmonia. O jeito que ele diz isso me deixa sem resposta. A respiração dele toca meu rosto, e por um instante o quarto gira de um modo que não tem nada de sobrenatural. Tem a ver com o que ele desperta, com o que nunca morreu, com o que o orgulho tenta enterrar e o desejo insiste em ressuscitar. — Você não vai conseguir me provocar. — minto. — Eu nem comecei. As palavras dele são uma faísca. E tudo em mim é combustível. Dou um passo para o lado, mas ele me acompanha. — Não me olhe assim. — aviso. — Como? — Como se ainda me conhecesse. Ele sorri, mas o sorriso não é bonito. É perigoso. — E não conheço? — Você não faz ideia da mulher que sou. — Você fala como se isso devesse me assustar. — Deveria. Ele para diante da cama e passa a mão pelo lençol. — Um de nós vai dormir aqui. — Não vai ser eu. — Então quer dizer que eu devo? — Faz o que quiser. Ele dá um meio riso, cansado. — Essa sempre foi a nossa ruína, não é? Nenhum de nós aceita perder. — Errado. — retruco. — Eu perdi faz tempo. Ele ergue o olhar. — Então por que ainda luta? “Porque eu quero te destruir” é o que eu gostaria de dizer. Mas antes que qualquer resposta saia, ele se aproxima o suficiente para que nossas respirações se misturem. O tempo parece prender o ar entre nós. Nenhum se move. Nenhum recua. O olhar dele desce para minha boca. O meu, por reflexo, o segue. Um milímetro, talvez dois, nos separam do erro que nunca deixamos de cometer. Mas ele recua primeiro. Como sempre faz quando percebe que está prestes a se perder. — Boa noite, Lívia. — diz, e a voz dele é um insulto e uma súplica ao mesmo tempo. — Vá dormir. — respondo, com o coração em chamas. Ele pega o travesseiro e o leva até o sofá. Deita sem me olhar, e eu finjo não perceber que a respiração dele se altera cada vez que me movo na cama. Fecho os olhos. A distância entre nós é um campo de batalha. E o que nos separa não é o passado, nem o orgulho, é o fato de que, se um de nós ceder, o outro vai queimar junto.