capitulo 3

— Porque ele oferece salário que poucos conseguem. Helena solta uma risada curta.

— Quase o triplo do nosso. Benefícios que fariam até o sindicato se emocionar. Uma estrutura sólida, equipe de apoio e ferramentas de ponta. E, além disso, um currículo que vale por toda a vida. Trabalhar três meses com ele abre portas que nem imaginamos existir.

Faço uma pausa. Não pelo glamour, mas pelo cálculo. O custo dos meus medicamentos, os exames de sangue, a consulta particular sempre que o posto atrasa, o aluguel que sobe como se tivesse vida própria. E, mais do que dinheiro, um pensamento persistente: meus pais. O conserto dos dentes do meu pai que sempre deixamos para depois. A geladeira da minha mãe, antiga, ruidosa como um motor cansado. Eu poderia resolver isso.

— A Beatriz perguntou especificamente por você. acrescenta Helena.

— Eu a indiquei. Sem hesitação. Sei do que você é capaz quando tem um cronograma e um império nas mãos.

Um sorriso pequeno aparece em meu rosto. Não sou de ficar corada facilmente; aprendi a controlar o rubor.

— Obrigada, Helena. O que a Beatriz deseja?

— Uma entrevista. Amanhã, às 7h30, na Satamini Corp., 42º andar. Dress code discreto, sapato confortável e mente afiada. E… Ela hesita.

— blindagem emocional. Ele testa. Ele provoca. Ele avalia.

— Eu me adapto. afirmo, de forma simples. Eu sempre consigo.

Saio da sala com o convite ressoando em minha mente e uma combinação complexa no coração: um respeito pelo medo e uma vontade intensa. No corredor, encontro Rafa desmontando uma impressora como se fosse um brinquedo de Lego.

— Vai se tornar astronauta, Rafa?

— Apenas se a nave aceitar toner reciclado. Ele ri. — Você está com a expressão de quem recebeu uma grande notícia.

— Recebi. — respondo.

— Depois te conto.

De volta à minha mesa, organizo a tarde para que a Vértice não sinta minha falta amanhã. Envio e-mails, deixo memorandos prontos e preparo uma lista de pendências para a Júlia me ajudar. Júlia tem vinte e dois anos, é inteligente e aprende rápido. Dou uma mini-aula de trinta minutos a ela:

— Prioridade um: UrbanAxis. Se eles ligarem, nada de prometer prazos sem consultar o jurídico. Prioridade dois: motoboy. O Jonas é plano B. Se São Paulo decidir ser caótica, ligue para o Marcelo que conhece o caminho pelos atalhos da Radial. Ele evita o trânsito. Prioridade três: Helena. Ela não gosta de surpresas. Mande atualizações a cada duas horas.

— mesmo que seja só um “tudo certo”.

— Checklist?

— Júlia já sabe que sempre há um.

— Aqui.

Entrego um impresso com marcadores.

— E aqui está: minha caneta reserva da sorte.

— Você vai precisar dela mais do que eu amanhã. Júlia pisca, cúmplice.

No final do expediente, ligo para minha mãe.

— Mãe, lembra do dentista do papai?

— Lembro, filha. Vamos ver ele mês que vem, quando entrar o décimo...

— Não precisa esperar. Vou resolver isso. Afirmo, e do outro lado, o silêncio é como um abraço.

— Você conseguiu um aumento? Ela pergunta, entre esperança e cautela.

— Ainda não. Mas estou buscando oportunidades maiores. Depois te conto.

— Seja o que for, cuide-se. Ela tem o dom de escolher as palavras certas, sem me prender a elas.

Desconecto, pego o metrô e volto para casa. Meu apartamento é pequeno, mas acolhedor: duas janelas que recebem vento, uma planta persistente em um vaso na cozinha e um varal disposto como prateleira de uma loja. Retiro os saltos e os deixo perto da porta (um som de vida que continua), prendo o cabelo e coloco uma camiseta de algodão. A pele agradece.

Abro o armário e inicio o ritual pré-entrevista: experimento roupas que já possuem forro. Saia lápis? Não hoje a costura na linha da cintura pode ser desconfortável. Uma calça de alfaiataria com forro suave, uma blusa de seda forrada (a seda pura provoca desconforto quando em contato direto com a pele) e um blazer estruturado que me confere a postura de quem não pede permissão. Testo movimentos diante do espelho: sentar, levantar, erguer o braço, girar o corpo. Nada aperta, nada arranha, nada denuncia. É isso.

No celular, crio uma nota chamada “Satamini Entrevista”:

- Chegar às 7h10 (antecipar elevador e cadastro).

- Levar currículo impresso e referências da Helena.

- Estudar projetos recentes (anoto os títulos que já vi circulando nas notícias internas do setor).

- Perguntas que preciso responder rapidamente: logística de agenda internacional, gestão de conselho, protocolo de crise, comunicação com o departamento jurídico, fluxo de assinatura digital.

- Lembrar: respiração baixa, respostas curtas. Pessoas em posição de poder desprezam rodeios, mas valorizam firmeza.

Mantra: “eu não encolho”.

Antes de dormir, tomo um banho morno rápido, cuido da pele com a delicadeza de quem acalma feridas e apaga incêndios. Deito e, como sempre, encaro o teto por alguns segundos. Sou uma guerreira em minha própria pele. Não é um slogan para pôster é minha forma de existir. Se amanhã tudo der certo, entrarei em um andar onde luzes frias e homens sérios acreditam que controlam o mundo. Tudo bem. Deixo que pensem assim. Eu comando minha própria calma. E a calma vence grandes desafios.

Durmo.

---

O despertador me acorda às 5h20. Café preto, pão macio (nada de casca que machuque a boca), garrafinha de água na bolsa, kit de sobrevivência completo. O metrô ainda tem assentos vazios. Sento na ponta, olho pela janela escura onde meu reflexo revela o rosto de uma mulher que se virou sozinha quando necessário e que não romantiza o esforço, apenas age.

Desço duas estações antes e caminho três quarteirões. Prefiro chegar aquecida. Isso traz foco. Na esquina, a Torre Satamini ergue-se do chão como se fosse parte dele: vidro azul, aço polido, entrada que lembra o lobby de um hotel de luxo. A recepção é silenciosa como uma biblioteca e segura como um aeroporto. Apresento meu documento e recebo um crachá de visitante com a letra S em dourado. O elevador é espelhado. As luzes revelam tudo ainda bem que não peço desculpas.

No painel, pressiono o botão 42. O número acende como uma promessa e uma ameaça. No espelho, coloco uma mecha rebelde atrás da orelha. Postura. Queixo na altura correta. Ombros relaxados.

As portas se abrem. Piso claro, linhas clean, aroma de dinheiro antigo e café fresco. Atrás da recepção, um vidro imenso exibe a cidade em submissão. Caminho até a mesa e digo meu nome com tranquilidade. A recepcionista sorri profissionalmente.

— Clara Albuquerque? Ela confirma no sistema. — Entrevista às 7h30 com o senhor Satamini.

Assinto. Não tremo. Coloco o medo no bolso e dejo apenas a determinação do lado de fora. A recepcionista solicita que eu aguarde. Sento-me, cruzo as pernas com movimento econômico. Pego a caneta que dei à Júlia como amuleto e recordo que emprestei, não doei. Está tudo certo: trouxe outra.

Respiro fundo. Não conto até dez. Não preciso.

Vim aqui porque fui recomendada, sim. Vim porque a remuneração é melhor, claro. Vim sabendo que ele é arrogante e que o jogo é difícil. Mas, acima de tudo, vim porque posso. Porque sou a mulher que organiza o impossível e atravessa sem precisar de plateia.

A porta da sala de reuniões acende o sinal verde. A recepcionista se levanta, pega o telefone, e me lança um breve gesto de é agora. Levanto-me, ajusto o blazer com a ponta dos dedos e caminho.

Não é a luz que irá me definir.

Sou eu.

E eu sou suficiente.

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