**Narrado por Clara**
Acordo antes do despertador, pois meu corpo segue duas rotinas: a do relógio e a da minha pele. Se a pele está tranquila, consigo alguns minutos a mais. Se apresenta sinais de incômodo, faço ajustes. Opto por um banho morno, nunca quente. A toalha toca levemente o corpo, como se pedisse licença para sair. Aplico pomada nas áreas sensíveis e coloco algodão por baixo da camisa — um truque antigo. Em seguida, faço uma maquiagem discreta e eficiente: uma pele uniforme, lábios sóbrios e olhos que não se envergonham de encarar o mundo. Tenho 27 anos e carrego um manual invisível de sobrevivência que vive na minha bolsa: soro fisiológico, bandagens, creme sem perfume, um analgésico leve, um mini-estojo com curativos e um bilhete que escrevi para mim mesma meses atrás: “Você não é a sua doença. Você é quem atravessa.” Isso me ajuda a manter o foco. Fisicamente, sou do tipo que atrai olhares sem esforço: ruiva com cabelo longo em ondas, olhos verdes que revelam quando algo me ofende, pele clara que trato como um segredo guardado. Com 1,73 de altura, mantenho uma postura ereta e ando com passos firmes. Uso saltos médios, nunca muito altos elegância sem atrito. Quando me perguntam o que visto, respondo: estratégia. Opto por roupas com forro macio, tecidos que não irritam e cortes que me permitem liberdade de movimento. Estética e funcionalidade andam lado a lado. Trabalho no 18º andar da Torre Íris, em uma empresa de porte médio no setor de projetos e incorporações Vértice Engenharia. Não é um lugar glamouroso, mas tem seu peso no mercado. A sala de reuniões é de vidro, a cafeteria é simples, o corredor exala o aroma de café e tinta de impressora, enquanto a equipe é pequena, mas se desdobra para dar conta. Atuo na recepção executiva, que seria injusto chamar de balcão. Na verdade, é mais como uma torre de controle: três telas, dois telefones, um calendário que cuido como um ser vivo e uma planilha que conhece a agenda dos diretores melhor do que eles próprios. O Seu Anselmo, porteiro, me chama de “menina da cabeça fria”. A Helena Lobo, diretora administrativa, me chama de “meu relógio suíço”. O Rafa, estagiário de TI, diz que sou um “sistema operacional humano”. Eu sorrio e sigo em frente. — Bom dia, Clara . Helena aparece, com passos firmes, pasta embaixo do braço e um perfume discreto. — Bom dia, Helena. A reunião com a UrbanAxis está confirmada para às 10h. O CFO deles solicitou quinze minutos antes para revisar os índices. Já preparei a sala B, com a projeção testada, água sem gás e café forte. Ela me olha com a intensidade de quem inspeciona uma aeronave antes da decolagem. — E o contrato do Lote 12? — Está impresso, rubricado e lacrado. O motoboy chega às 11h15. Se o trânsito estiver complicado, já reservei o Jonas, o outro motoboy, para às 11h40. Helena sorri com um leve sorriso, a forma mais carinhosa que uma diretora treinada pode oferecer. — Você é meu milagre de segunda-feira, Clara. Eu sou. E gosto de ser. Minha arma é a organização, minha munição, a previsibilidade. O caos me respeita. Às 9h22, o telefone toca com urgência. É a UrbanAxis tentando mudar a reunião para as 11h, pois o CEO deles foi retido em uma vistoria. Em dois minutos, reorganizo tudo: aviso jurídico, encaminho a consultoria de seguros para o fim da tarde, troco a sala B pela A (com melhor acústica), remanejo o coffee para meia hora depois, envio os e-mails e confirmo tudo com mensagens diretas. Ninguém percebe a turbulência, só eu e minha planilha. É assim que gosto: uma crise silenciosa, uma solução limpa. Entre uma ligação e outra, bebo água como se estivesse cumprindo uma promessa. Os medicamentos exigem hidratação; meu corpo merece respeito. Dou uma checada discreta no forro da blusa — tudo em ordem. Sem ardência. Sem alerta. Às 12h05, a UrbanAxis finalmente chega ao elevador. Recebo e guio as pessoas, oferecendo água. O CFO um homem tenso com o maxilar travado me agradece como se eu tivesse entregue um bezerro dourado. Na verdade, só entreguei o que é óbvio, bem feito. Porém, no mundo real, o óbvio bem feito é algo raro. No calor do meio-dia, Helena me chama para sua sala. Porta de vidro, persiana meio fechada, aroma de marca-texto e café fresco. Sento-me. Ela permanece em pé, organizando papéis com uma expressão quase nervosa algo raro nela. — Clara, vou ser direta. Helena é direta, não usa açúcar onde não precisa. — Recebi uma ligação da Beatriz Prado, uma headhunter em quem confio. Eles têm uma vaga… fora do comum. — Fora do comum como? mantenho a voz neutra, mas meu corpo dispara todos os sinais de alerta. — Secretária executiva de um CEO.E não é um CEO qualquer. Estamos falando de um nome de peso no setor de vidro e aço. Você sabe de quem estou falando: Satamini. A palavra se espalha pela sala como uma lâmina brilhante. Satamini. Já ouvi esse nome mil vezes e, sim, já percebi o ambiente inteiro se ajustar quando o sobrenome é mencionado. Helena continua: — Miguel Satamini. Ele está sem secretária há dois meses. A última saiu em lágrimas e levou uma indenização suficiente para comprar dois apartamentos de um quarto. Antes dela, outras duas não duraram nem um ano. O homem é… ela procura uma palavra que não seja ofensiva para a parede. — arrogante. Exigente a um nível extremo. Exige precisão máxima, detesta atrasos, não suporta longas explicações. Não tolera erros. Não suporta barulho. Não aceita improvisos. — Então, por que alguém aceitaria trabalhar com ele? pergunto, não por ingenuidade, mas por método.