Capítulo 1 — Estilhaços

A campainha do 1203 nunca funcionava. Toquei duas vezes, sabendo que era inútil, antes de começar a revirar a bolsa em busca da chave. Os dedos tremiam de frio e de pressentimento. Eu sempre tinha a chave comigo; Valentina confiava ou talvez pouco se importasse que eu entrasse em seu apartamento quando ela viajava.

Era quase um ritual: eu limpava, organizava, deixava marmitas prontas para ela. Fazia mais do que precisava, mais do que devia. Eu a amava, mas no fundo fazia de tudo para receber de volta um amor que nunca veio. O amor dela. O dos meus pais.

Val sempre foi a preferida, o sol da nossa casa. Espontânea, linda de um jeito estonteante, parecia um dia ensolarado de verão. Eu? Eu era a tempestade depois do verão: pesada, inconveniente, o céu que estraga o passeio, a bagunça depois do furacão.

Nunca planejada. Nunca desejada. Uma intrusa na primogenitura de Valentina.

Passei a infância implorando. Por amor. Por atenção. Por perdão por existir. Eu me desculpava por tudo. Eu implorava por colo.

E, ainda assim, ali estava eu: trazendo uma torta de limão, a favorita dela. A mesma que mamãe disse horas antes que “não valia a pena” fazer, porque “Valentina vive de dieta e você vive de tolices”.

O céu de Veridiana pesava em um cinza miúdo. A garoa riscava os vidros como dedos impacientes. Meu coração batia torto dentro do peito, como se soubesse antes de mim o que me esperava.

Henrique não atendia minhas mensagens havia horas. Mas, se ele pedisse perdão, eu sabia que perdoaria. Sempre perdoei. Sempre implorei. Sempre o amei desde a adolescência o veterano popular do colégio, o mais bonito do Morro das Lavandas.

Patética. Eu implorava amor de todos.

Girei a chave. A porta abriu-se com facilidade.

O apartamento de Valentina era um catálogo de revista: paredes brancas impecáveis, sofás bege de linho, vasos de plantas escolhidos como se tivessem diploma. O cheiro de vela doce me envolveu antes da visão.

— Val? — chamei, baixo. — Tô entrando...

Do corredor, veio um som. Não era música. Era respiração. Depois, um riso abafado. E a palavra “mais”, soprada como pecado.

O resto me atingiu como um soco.

Movimentos descompassados. Um gemido cortado. Pele demais no lugar errado.

Valentina, no sofá da sala, o cabelo loiro derramado como uma pintura renascentista.

Henrique, o meu noivo, entre as pernas dela.

O vestido empurrado até a cintura. Os seios à mostra, mãos cravadas nos ombros dele.

Dois segundos. Três. Quatro. Meu corpo ainda em pé, mas minha alma despencava.

O cérebro tentou negar. Procurou desculpas. Criou narrativas alternativas. Mas não havia outra narrativa possível.

Unhas. Gargalhadas abafadas. A gargalhada dela.

— Não... — A palavra escapou de mim pequena, quase sem som.

A porcelana da travessa escorregou das minhas mãos. A torta de limão se espatifou no tapete. Cobertura espalhada como uma ferida. O barulho seco do prato quebrado os fez perceber minha presença.

O mundo ficou estreito. O ar desapareceu.

Valentina arqueou uma sobrancelha, como se eu fosse apenas a inconveniente que entrou atrasada em uma reunião já começada.

Henrique ergueu-se apressado, descabelado. Por um instante, quase vi nos olhos dele um pedido de desculpas. Mas o instante passou.

— Você não bateu — disse Valentina, amarrando o cinto do robe com a calma de quem troca de canal. — Que falta de educação.

Falta de educação. A frase cravou em mim mais fundo do que qualquer faca.

— O que vocês... — Minha voz quebrou. — O que é isso?

Henrique ergueu as mãos. Não em culpa. Em justificativa.

— Não é o que você está pensando.

— Então me explica — respondi, fria. — É uma aula prática para nossa lua de mel?

Meus olhos ardiam. A visão se turvou. Eu só queria sair dali. Longe deles. Dois traidores que me despedaçaram em segundos.

Valentina bufou. Henrique riu nervoso.

Será que a culpa era minha? A gritou a pequena Ceci dentro de mim.

— Desde quando? — perguntei, num sussurro.

— Desde sempre. — Ele disse sem peso, sem arrependimento. — Eu sou homem. Tenho necessidades. E Val as sacia muito bem.

Dois passos para trás. Ceder terreno sem ceder a alma. Não pedi mais explicações. Não chorei ali.

Peguei a bolsa. A chave que nunca mais usaria. Saí.

O vento frio da rua roçou meu rosto. Veridiana seguia viva. Carros, buzinas, gente correndo com café. Quase cruel o mundo seguir enquanto eu morria por dentro.

O celular vibrou. Mensagem de Henrique.

Não era um “me perdoa”. Era: “Preciso que devolva o anel de noivado.”

As lágrimas vieram em torrente. Ainda bem que a chuva engrossava para escondê-las.

Ele quer o anel de volta para dar a Valentina.

Praguejei. Nem se dá ao trabalho de inventar desculpas.

Caminhei até meu apartamento quase sem enxergar. O peito queimava. A garganta ardia.

Em casa, desabei. Tomei um banho quente, deitei no sofá e chorei. Chorei até perder a noção do tempo.

Não sei quando adormeci, nem quando Lívia chegou. Só sei que lá estava minha melhor amiga, preparando chá de camomila.

Sentei devagar. Olhos inchados, rosto marcado como se tivesse sido pisoteada por uma boiada.

Ela me entregou a caneca.

— Obrigada... — sussurrei.

— O que aconteceu, Ceci?

Quando terminei de contar, Lívia disparou ofensas contra Val.

— Aquela cobra rastejante... aposto que foi ela que ofereceu a maçã a Eva.

Lívia sempre odiou Valentina. Dizia que minha família não me merecia. Mas, no fundo, eu os amava. Se Valentina me pedisse desculpas, eu a abraçaria. Eu diria que tudo bem. Idiota. Eu sei.

Mas quem cresce implorando amor não aprende a negar.

Os dias seguintes foram um borrão.

O mês passou como um inverno arrastado, mesmo sendo verão em Veridiana. Eu me movia no modo automático: despertador, banho, trabalho no Café Lótus, faculdade . Regava as plantas. Pagava as contas no último dia. Repetia tarefas como quem cumpre sentença.

Aprendi a apreciar o som da chaleira chiando, o ritual do filtro de papel, o vapor subindo em espiral. Se eu mantivesse o ritual, talvez o coração não implodisse.

Mas as lágrimas eram traiçoeiras. Apareciam sem aviso no ponto de ônibus, em frente à vitrine de vestidos, durante uma aula. Eu as apagava rápido, como quem apaga velas.

Lívia vinha me visitar quase todos os dias. Trazia comida, fazia piada, me puxava para fora da cama. Mas tudo amargava na minha boca. Até a agua.

Perdi quase oito quilos em semanas. Os ossos começaram a marcar. A pele ficou pálida. olhos com olheiras que eu não sabia me diferenciar de um panta. Eu era um fantasma.

E, mesmo assim, ainda usava o anel de noivado. O diamante brilhava no meu dedo como uma cicatriz. Talvez eu consiga esquecer… talvez, se eu pedir desculpa… se eu não tivesse entrado sem bater…

Culpa. Sempre culpa. Sempre eu.

No sofá, um sábado qualquer, assistia a um filme de romance genérico. Casais se beijando na tela, enquanto eu sentia um vazio rasgar minha carne.

Às 15h17, bateram à porta. Três toques firmes, de quem não espera permissão.

Quando abri, vi meus pais. Marta e Álvaro entraram sem convite, como sempre. Atrás deles, Henrique. Camisa branca, cabelo penteado, a mesma cara de “estou fazendo o correto”.

Meu estômago revirou.

Marta me olhou de cima a baixo, o olhar de reprovação que conheço desde criança. Como se meu rosto inchado de choro e meu corpo emagrecido fossem uma ofensa a ela.

— Cecília. — Ela ajeitou a bolsa no antebraço, a voz calma e gelada. — Precisamos conversar como adultos.

Cruzei os braços, apoiando-me na bancada da cozinha americana.

— Vocês têm cinco minutos.

Álvaro pigarreou, como quem ensaia autoridade que nunca usou de verdade.

— O casamento será daqui a seis meses. Vamos manter a mesma data e o mesmo local. Só vamos… trocar a noiva.

Senti meu coração parar por um segundo.

Marta completou, com voz doce de veneno:

— Sua irmã está sensível. Você sabe como ela é. Esperamos que você esteja lá, em família valentina quer você como madrinha dela.

Pisquei, devagar. Não acreditava.

Henrique evitava meus olhos, mas se mantinha firme, como se fosse apenas uma reunião de negócios.

Foi então que Marta soltou a bomba, como quem fala da previsão do tempo:

— Valentina está grávida.

Grá-vi-da.

As letras ecoaram dentro de mim como martelo em ferro.

Meus pulmões arderam. Meu corpo inteiro ardeu. Eles estavam reutilizando a minha vida. O meu sonho. O meu altar. Apenas substituíram a noiva, como quem troca a decoração da sala.

Marta continuou, impassível:

— Ela precisa de compreensão. Esperamos que você seja madura. Sei que sempre teve inveja da sua irmã, mas esse sentimento precisa mudar.

Meu riso foi seco com amargura, quase um soluço.

E então veio a facada final:

— Pensamos numa solução prática. Como você ainda está estudando e nem sabemos se irá se formar, eu trabalho não paga bem… poderia aproveitar para ser babá da criança quando nascer. Assim todo mundo ajuda todo mundo.

Silêncio.

O mundo girava, mas eu estava imóvel.

Piscaram. Esperavam que eu aceitasse.

Senti um riso pequeno, sem som, escapar da minha garganta. Peguei o vaso de cerâmica sobre a mesa — presente de Valentina no último Natal.

— Vocês têm três minutos.

— Cecília! — Marta elevou a voz, fingindo escândalo. — Não seja infantil. Aconteceu o que tinha que acontecer. Seja adulta!

O vaso voou. Não acertou ninguém. Espatifou-se contra a parede. Uma chuva de cerâmica e margaridas pelo chão. O cheiro invadiu a sala como lembrança queimada.

Henrique, até então calado, deu um passo à frente.

— Eu preciso da aliança, Cecília.

Olhei-o por dois segundos eternos. Tirei o anel do dedo. O metal frio parecia queimar minha pele. Joguei no peito dele.

Marta arfou. Álvaro tentou um tom de autoridade.

— Você está sendo cruel.

— Não. — Minha voz saiu baixa, mas firme. — Estou sendo adulta.

Eles se entreolharam, ofendidos. Saíram.

O corredor devolveu um eco que soou como liberdade.

Varri os cacos devagar. Fiz café. Liguei para Lívia.

_ Eu disse pra eles saírem.

Ela suspirou do outro lado da linha.

_E como você está?

_ Nada bem _ respondi com desanimo

Olhei pela janela. A chuva tinha dado trégua. O céu azul lavado refletia nos prédios velhos como se fossem cenários de cinema.

Peguei a bolsa. Fui ao mercado comprar um vaso novo.

No caminho de volta, cortei pela Praça das Letras. E lá estava ela: a Torre Arcturus, atravessando o céu, espelhando nuvens como se fossem dela.

O coração acelerou. Meu olhar ficou preso no arranha-céu.

Dante Bellucci. O homem que mandava na cidade. O homem que todos temiam e respeitavam.

Balancei a cabeça, em rendição amarga.

Era um sonho distante demais trabalhar ali. Um mundo que não era o meu.

Mas, por alguma razão, não consegui parar de olhar para aquela torre.

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