O bolinho da minha mãe ainda tá no meu prato, uma metade esquecida entre goles de chá e conversas abafadas. — Ele tentou cuspir no chão da cela — comenta Lord, com a sobrancelha arqueada e uma expressão que mistura nojo e diversão. — Errei a mira e joguei água fervendo na perna dele. Uma pena. — Uma pena mesmo — digo, saboreando mais um gole do chá. — Devia ter acertado a cara. — Isso seria uma ofensa à água fervendo — completa Gabi, sentando-se ao meu lado com a elegância de quem guarda uma adaga entre frascos de hidratante e tônicos explosivos. Alex não diz nada. Está com os olhos fixos na fogueira, a mandíbula travada. Eu o conheço o suficiente pra entender que está se contendo. Que se deixasse, já teria voltado naquela cela e enfiado a adaga milenar em algum lugar bem doloroso — só pra ver se o sujeito falava alguma coisa. — Dois dias — Gabi fala, como se estivesse lendo os pensamentos dele. — E prometo que ele vai falar tudo. Alex assente com a cabeça, mas não responde
Ele fecha os olhos por um segundo quando meus dedos tocam sua pele. O calor do toque dele é o suficiente para aquecer até onde o frio da noite ainda insiste em se esconder em mim.— Sua mãe parecia mais leve hoje — ele comenta, os olhos ainda fechados, voz baixa. — Como se parte do peso que ela carregava tivesse ficado no caminho de volta.— Acho que foi ver o Lord ali, todo desajeitado com o chá e os bolinhos.— Ele realmente tentou impressionar ela. Foi quase… fofo.— Quase. — Rio baixinho, encostando minha testa na dele. Isso é tão, ficar ao lado dele.Depois do cio sinto que estou mais próximo dele, sempre sobre sua pele. E ele sobre a minha.Minha loba gosta, ela tem vontade de correr ao seu lado o tempo todo, mesmo que não tenhamos conseguido fazer muito disso ultimamente.Alex segura meu rosto com as duas mãos agora, e os olhos dele me estudam com tanta calma que por um segundo o mundo parece mesmo ter parado. Amor fica tão claro neles. Tão fácil de ver.— Você é tão forte, Zoe
O sol mal começava a despontar no horizonte quando bati na porta da cabana da Gabi, ainda meio zonza de sono e enrolada no moletom do Alex, que agora era praticamente meu uniforme. O cheiro de ervas fortes já invadia o ar, e não precisei de mais do que alguns segundos para perceber que ela já estava no modo “bruxa laboratorial”.— Entra logo antes que as folhas peguem umidade! — Gabi chamou lá de dentro, sem nem olhar.Obedeci, fechando a porta atrás de mim, e encontrei minha amiga debruçada sobre uma mesa abarrotada de frascos, pós coloridos e pedaços de raízes tão estranhos que eu preferi nem perguntar.— Sabe que isso aqui parece cenário de um daqueles filmes de bruxa dos anos noventa? — comentei, me aproximando.— Fico ofendida. Eu sou bem mais estilosa que aquelas bruxas de filme — ela retrucou, ajeitando uma mecha rebelde do cabelo com o cotovelo, já que as mãos estavam ocupadas misturando um líquido roxo num caldeirão pequeno.— Estilosa é uma palavra forte — provoquei, receben
Ela estendeu a tigela na minha direção. Hesitei um pouco, mas coloquei minhas mãos sobre as dela.— Fecha os olhos — ela instruiu, suavemente.Fechei.— Agora pensa nele. No que você quer saber. No que precisa entender.Respirei fundo e deixei as imagens virem: meu pai. Seu rosto endurecido. A adaga desaparecida. Minha mãe, diante da fogueira, me olhando como se carregasse todo o peso do mundo nos ombros.Eu precisava da verdade. De todas as verdades.Senti uma leve vibração sob meus dedos, como se o próprio ar dentro da tigela tremesse.— Isso — Gabi murmurou. — Continua.Me concentrei mais. Vi flashes do que tínhamos passado: a viagem até Talos, o choque, a raiva de Alex, o olhar de Lord. O riso de Gabi, mesmo nos piores momentos. O abraço da minha mãe. O calor do moletom de Alex. A certeza de que eu não estava mais sozinha.A tigela começou a brilhar com uma luz pálida, dourada.Gabi abriu os olhos primeiro e sorriu.— Tá pronto.— Uau — soltei, abrindo os olhos devagar. — Isso foi
Alex e Lord já estavam à nossa espera quando Gabi e eu chegamos com o tônico.— Demoraram — Alex comentou, encostado na parede com os braços cruzados. Seus olhos dourados passaram rapidamente de mim para o pequeno frasco de vidro âmbar nas minhas mãos.— Estávamos caprichando — Gabi respondeu, piscando para ele. — Fazer um tônico da verdade de respeito leva tempo.— Ele está acordado? — perguntei, tentando espiar pela pequena janela da porta de madeira maciça.— Está — respondeu Lord, com um sorriso que mostrava todos os dentes. — E de mau humor. Melhor ainda.Alex abriu a porta com um ranger pesado, e o cheiro de mofo, suor e feno velho escapou para fora. Lá dentro, o “prisioneiro” — o alfa, meu pai — estava sentado no chão, encostado na parede da cela, de olhos semicerrados, como se estivesse esperando algo muito pior do que uma visita amigável.— Olá, pai — falei, sem muita emoção.Ele ergueu a cabeça e nos olhou com desdém preguiçoso, o tipo de expressão que fazia minha mão coçar
— Ela nasceu para isso — Gabi respondeu, orgulhosa. — Se depender dela, o FISP deste ano vai ser lembrado por gerações.As barracas de tecido colorido já estavam sendo montadas ao redor da clareira principal. Cordões de flores pendiam entre as árvores, trançados com folhas e pequenos cristais que captavam a luz, lançando reflexos dançantes pelo chão. Um pequeno palco de madeira estava sendo construído no centro da clareira, onde os rituais e as bênçãos aconteceriam.Lord, que vinha logo atrás de nós, passou o braço pelos ombros de Gabi.— E pensar que há poucos dias a gente estava enfiado em uma aldeia mofada — ele disse, bufando, enquanto chutava uma pedrinha do caminho.— E agora estamos de volta em casa, onde o festival mais importante da nossa história vai acontecer amanhã — Gabi sorriu, ajeitando o cabelo que o vento insistia em bagunçar.— E onde a gente tem um prisioneiro dopado debaixo do chão da floresta — acrescentei, com uma risada meio seca.Eles riram, e eu também, porque
O cheiro forte do tônico ainda pairava no ar enquanto descíamos até o subterrâneo. A pequena sala, escavada sob as raízes da floresta, parecia mais escura do que de costume, como se soubesse o que ia acontecer ali.O prisioneiro, meu pai, estava amarrado na cadeira, o corpo ainda se mexendo levemente conforme o efeito do tônico se espalhava. Gabi se aproximou primeiro, observando a pele dele suar e as pupilas dilatarem. Era sinal de que a mistura começava a fazer efeito.Eu fiquei a poucos passos de distância, observando. Alex e Lord preferiram se encostar nas paredes, mas eu sabia que, se fosse necessário, eles atravessariam a sala em segundos.— Vai começar — Gabi murmurou para mim, com um meio sorriso que não escondia a tensão.Ela se ajoelhou à frente dele e falou num tom neutro:— Me diga… por que você usou a adaga?O homem estremeceu. Suas pálpebras tremularam antes de se abrir completamente. Por um segundo, vi confusão, depois uma entrega forçada, como se seu corpo estivesse tr
Vi Liz, minha mãe, perto do altar, ajeitando pequenos vasos de flores com uma paciência que me trouxe uma dor aguda no peito. Cada gesto dela era sereno, como se estivesse montando um pedaço de esperança em forma de decoração.Ela não sabia — ainda não — tudo o que tínhamos descoberto naquela noite.E talvez… talvez nem precisasse saber.Talvez fosse melhor assim.Senti Alex se aproximar mais, seu calor confortável me ancorando ali.Lord nos alcançou logo depois, passos pesados de propósito, como se não quisesse surpreender ninguém naquele espaço sagrado.Ele parou ao nosso lado, cruzando os braços diante do peito e olhando tudo ao redor com uma expressão satisfeita.— Nunca vi um FISP tão bonito — comentou, o tom cheio de respeito genuíno. — Nem mesmo antes da guerra.As palavras dele pairaram no ar como uma bênção, e por um instante, até o peso do mundo em nossos ombros pareceu mais leve.— Lívia nasceu pra isso — Gabi respondeu, orgulhosa, jogando um olhar em direção à amiga que, n