Capítulo 3 — O LUTO DO PADEIRO

A porta da igreja se fechou atrás de Kai com um baque surdo que pareceu abafar todos os outros sons do mundo.

Ele ficou parado no degrau de pedra, o capacete pendurado em sua mão direita como um peso morto.

O sol da tarde batia em seu rosto, mas ele não sentia calor. Só sentia um frio profundo, que vinha de dentro.

Ele olhou para a moto. Ela estava tombada na calçada, um animal ferido. A roda dianteira ainda girava lentamente, sem propósito.

Kai fez as contas na cabeça: o conserto do guidão, o farol quebrado, o pedal direito empenado. Custos. Sempre custos. Sua vida era uma matemática de pequenas sobrevivências, e hoje, a conta tinha vencido.

Eu devia ter sido mais rápido, pensou, mas a culpa não veio com fúria. Veio como um cansaço antigo. Devia ter guardado mais dinheiro. Devia ter nascido com um sobrenome que valesse alguma coisa. Ele olhou para suas próprias mãos. Marcas de queimaduras antigas dos fornos, cicatrizes de facas de cortar pão, unhas sempre limpas de farinha. Mãos que criavam. Mãos que nunca tinham tido poder para segurar o que mais amavam.

Amor não paga dívidas, percebeu, e a verdade era tão simples que doía mais que qualquer grito. Não assina contratos. Não salva empresas falidas. É só um sentimento. E sentimentos são coisas frágeis em um mundo feito de concreto e dívidas.

Respirou fundo. O ar da cidade era pesado, cheirava a asfalto quente e à promessa de chuva que nunca vinha. Dois pássaros brigavam por uma migalha perto da sarjeta. Kai virou o rosto. Não aguentava mais ver lutas perdidas.

FLASHBACK — A Padaria, Duas Semanas Antes

Eram três e dezessete da manhã. O relógio da parede, com o ponteiro dos minutos emperrado, sempre marcava a mesma hora nos momentos mais verdadeiros. O ar dentro da padaria era quente, denso, carregado do cheiro doce de massa crescendo e do amargo do café forte. Farinha dançava nos raios de luz que vazavam pela persiana quebrada.

Isla estava sentada no balcão, de pernas cruzadas, com uma xícara de chá de hortelã esfriando entre suas mãos. Ela usava um suéter velho e desbotado do Kai, tão grande que as mangas cobriam seus dedos. Seu rosto estava pálido de cansaço "tinha passado a noite ajudando a mãe com os papéis da empresa " mas seus olhos, quando se encontravam com os dele, estavam tranquilos. Observava-o moldar os pães com uma atenção que era, em si, uma forma de amor.

"E se eu te pedir tudo?" ela disse, a voz rouca de sono e de horas de silêncio compartilhado.

Kai não parou de trabalhar. Seus dedos afundavam na massa com um ritmo seguro, um movimento aprendido com o pai, herdado como a única coisa de valor em sua vida.

"Eu não tenho tudo," respondeu, simples, sem vergonha. A verdade era seu único patrimônio.

Fez uma pausa, erguendo os olhos para ela sobre a nuvem de farinha. Seus cílios estavam claros do pó.

"Mas se for você…" ele continuou, a voz mais baixa, "eu construo. Tijolo por tijolo. Pão por pão."

Isla sorriu, um sorriso pequeno e tão cansado quanto genuíno. Um sorriso que só existia naquelas madrugadas, naquele lugar que era deles.

"Até um casamento?" a pergunta saiu meio brincando, meio sondando um sonho.

Dessa vez, ele parou. Pousou a massa redonda na mesa e limpou as mãos no avental branco já manchado. Seu olhar era sério, intenso, sem nenhum traço da brincadeira dela.

"Principalmente um casamento," disse, e cada palavra parecia ter sido pesada antes de sair. "Do nosso jeito. Naquele cartório antigo perto do rio. Com o pão de canela ainda quente dentro de uma sacola de papel. Sem vestido que custa mais que essa padaria inteira. Sem plateia de gente que só vai contar o dinheiro do presente."

Ela deslizou do balcão, os pés descalços tocando o piso frio. Foi até ele, contornou a mesa enfarinhada e encostou a testa em seu peito, sobre o avental. Ficou ali, ouvindo o coração dele bater no mesmo ritmo constante e confiável de suas mãos trabalhadoras.

"Só nós," sussurrou, fechando os olhos.

"Só nós," ele confirmou, seu queixo repousando sobre sua cabeça, seus braços envolvendo-a sem pressa, sem medo de sujar seu suéter com farinha.

Era tudo que tinham. Era tudo que, naquela madrugada, parecia o bastante.

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