Batidas à porta de Elara soaram altas, urgentes. Ela saltou da poltrona, assustada como se estivesse sob uma ameaça repentina.
— Doutora Demirkan. Está aí? - A conhecida voz do legista que era seu amigo a alcançava, abafada atrás da porta, ela havia cochilado. - Elara. Atenda se estiver aí! - Exigia. Ela abriu a porta. Ahmet parecia aflito. - Você está bem! - Ele disse, segurando-a pelos braços. - O que houve com você? — Difícil dizer, Ahmet. - Ela o via preocupado. Ele a via exausta. - Tenho tido pesadelos pavorosos que me deixam em estado de alerta constante há uns dias. — Drogas? - Ele investigava. — Não! - Elara se ultrajava. - Não. Entra. Os vizinhos já tem medo de mim sem motivo algum. - Ela lhe dava passagem. - Quer um café? - Ela foi para a cozinha. Ahmet a seguiu. Percebia as anotações bagunçadas e desenhos. Ele gostava das ilustrações dela, pareciam trabalhos de Da Vinci, tinham um estilo único. Em meio à bagunça, o desenho, em cores, de um homem forte, imponente, um príncipe antigo, com o turbante, coberto de joias. Ao lado, uma joia e anotações. — Está trabalhando na sua pesquisa outra vez? - Ele se aproximou das anotações, pegava-as na mão e as via, detidamente. — Não. - Ela respondeu. - Tem a ver com o lixo mental que fica depois dos pesadelos. Parece ter algo com o tal Doutor Demir Zeki, essa joia em estrela e o coração de cerâmica da nossa vítima, como esse modelo aí. - Ahmet pegou o modelo na mão. — Elara, onde passou esta noite? - Ahmet perguntou. — Aqui, apavorada. - Ela entregou a caneca ao amigo. — Temos mais dois desses no laboratório. Um foi a duas ruas daqui, na praça. Fiquei muito preocupado que pudesse ser você. Sultanahmet não é mais seguro. - Ele disse. - Quem é este homem? Demir Zeki? — Este, específico, é o do pesadelo. - Ela respondeu, recebendo o desenho do amigo e o virando de face para a mesa. - Por que achou que fosse eu? — Convenhamos. - Ele disse, olhando-a. - Por mais que seja bonita, sua descrição é comum e não tinha identificação e nem marcas ou tatuagens, só conheço você com essa especificidade e que vive neste bairro. Como era próximo, me apavorei antes de receber o corpo. O chefe a quer de volta também. Os lugares parecem não obedecer um padrão. Há dias o caso do coração de porcelana não avança. - Ele a olhava, algo estranho no olhar do homem. - Escuta, Elara, não é bom para você ficar sozinha quando não é mais um bairro seguro. Vou ficar feliz em receber você em minha casa. — Ahmet. - Ela segurou a mão do amigo. - Estou bem, só assustada com uns pesadelos. Não tem nada a ver com segurança. - Ela respondeu. - Me dá uma carona? — Vim esperando o mesmo. - Ele gargalhou, nervosamente. - Vim com a viatura do necrotério. — Já volto, fique à vontade. - Ela disse, sumindo pelo corredor. Elara levou um tempo para aparecer, pronta para o trabalho, bem trajada, maquiada, com o cabelo preso em um rabo de cavalo, sob o bonito cardigã, de cores sóbrias, sobre a camisa de seda e a calça de alfaiataria, impressionava Ahmet pela postura. No pulso, colocava o estranho bracelete de pedra negra. Vestiu o cachecol em um capuz, envolvendo o pescoço que ostentava uma discreta fita dourada de ouro velho, com os brincos de bolinhas, do mesmo material, pequenos. - Vamos. - Ela calçou as luvas, pegando suas coisas, as anotações e o celular, quase sem bateria, com dúzias de mensagens e ligações perdidas dele. — Sua equipe tem sorte. Sempre trabalha assim? - Ele a admirava. — Está com saudades da sua assombração favorita, não está? Por isso esta elogiando hoje? - Ela sorriu, o arco bonito em um batom escuro, da cor do chocolate ornamentava-a. — Sempre sinto sua falta. Legistas não são populares entre as garotas. - Ele gracejou. — Não sou sua única amiga. - Ela se divertiu. — É a única que não cheira algo morto ou formol. - Ele respondeu, sagaz, contente com a presença daquele olhar de uma águia. ******************** Na Universidade, Demir dava falta de duas de suas alunas. Pedia para localizá-las, as ligações em caixas postais não davam em nada. Pegou os endereços e foi atrás delas. Com o aumento da violência contra mulheres na Turquia, era essencial vigiar aquelas mentes que estavam em corpos que atraíam olhares destrutivos de homens inseguros. Já no primeiro endereço, em Sultanahmet, ele bateu a porta, com o nó de um dedo, percebendo a porta encostada, deslocada do batente. Estranhando a situação, afastou a porta, com uma caneta. Um gato correu do lugar, coberto de sangue, apavorado. A casa, revirada, parecia ter recebido um furacão. — Yasmin? - Ele chamou. Não recebeu resposta. Ele se afastou, chamava a polícia. — Emergência. - A voz atendeu, mecânica. — Sou Demir Zeki. Quero relatar um arrombamento e um desaparecimento. - Ele se afligia. — Qual o endereço do arrombamento? - O homem do outro lado registrava, digitando, rapidamente. Outros sons de fundo denunciavam uma manhã agitada. Demir informou. - Tem alguém ferido ou caído? — Não, mas não entrei e o gato correu, lavado de algo vermelho. - Demir relatou. - E o desaparecimento? — Pode relatar pessoalmente, com a foto da pessoa, na central de polícia. - O homem o ignorava. - Aguarde no local pela unidade da polícia. Algo mais? - A voz, frívola, perguntou. — Não. Obrigado. - Demir respondeu, ouvindo a chamada ser desligada. Ele esperou por horas até uma viatura chegar. Entraram, não havia ninguém ali, apesar de haver muito sangue espalhado e uma poça, grande, que indicava violência. O caso era priorizado. Chamavam a unidade técnica. ******************** Elara assistia as autópsias. O mesmo ritual. Fora reintegrada com a urgência dos casos, tudo indicava um assassino em série, apesar de não haver padrão nas vítimas, nem nos locais, apenas o método era o mesmo. — Doutor, consegue inferir o peso que os corações teriam? - Elara chamava Ahmet através do comunicador. — Não, mas consigo afirmar que as peças de porcelana devem ter o mesmo peso, inclusive, em fração de grama. - Ele disse. - Temos identidades. Vai ficar até o fim? — Sim, Doutor. - Ela respondeu. Fazia desenhos e anotações. Desenhava os rostos das vítimas com os olhos e a pavorosa expressão sem eles. O caso adquiria vulto.