Tudo começou com a neblina. Espessa, silenciosa, tomou o prédio sem aviso, abafando os sons da cidade e apagando qualquer noção de tempo. Trancados entre paredes que antes pareciam familiares, os moradores começam a perceber pequenas distorções na realidade — ruídos que não têm origem, reflexos que não acompanham os movimentos, presenças que se sentem mesmo em cômodos vazios. Com o passar dos dias, a fronteira entre o real e o imaginário começa a ruir. Alguns afirmam ter visto zumbis vagando pelos corredores. Outros, criaturas de olhos negros e pele translúcida, observando da escuridão. O medo coletivo cresce, mas é o silêncio dos que acreditam estar despertando para uma verdade oculta que mais assusta. Altares surgem onde antes havia concreto. Portais se abrem, convidando. Será a loucura uma fuga ou a única resposta sensata? E se o prédio em si for mais do que estrutura — um limiar entre mundos, uma armadilha para as mentes mais frágeis? No fim, talvez o verdadeiro terror não esteja lá fora... mas dentro de cada um deles.
Leer másJonas se sentou no chão, com a caixa aberta ao lado, o caderno em mãos.O zunido em seus ouvidos parecia crescer de novo, mas desta vez era mais fraco, como se viesse de dentro da própria memória.Fechou os olhos.E as lembranças começaram a emergir.**Ele estava no segundo ano do ensino médio.Era uma tarde abafada, daquelas em que o ar parecia mais pesado do que deveria. A aula de História tinha terminado, mas Jonas tinha ficado para trás, arrumando seus materiais.O professor Daniel se aproximou, aquela figura alta, de rosto magro e olhos fundos.— Você acredita que lugares podem... lembrar? — ele perguntou, de repente, olhando para Jonas como se esperasse algo além de uma resposta simples.Jonas, na época, apenas deu de ombros.— Tipo... ter memória? — arriscou.O professor sorriu, mas foi um sorriso estranho.Cansado.— Memória é uma palavra fraca pra isso. — Ele ajeitou a caixa sobre a mesa, aquela mesma caixa. — Alguns lugares, algumas pessoas, são gravadas em camadas mais pro
Ainda com o diário apertado contra o peito, Jonas se levantou. A sensação de urgência crescia, como se o prédio inteiro estivesse respirando ao seu redor, em um ritmo que ele não conseguia controlar.Passou a lanterna pela pequena cômoda do quarto, do lado oposto à escrivaninha.Abaixou-se diante dela e puxou a primeira gaveta.Dentro, entre velhos lenços e algumas bijuterias empoeiradas, havia um papel dobrado cuidadosamente — diferente dos outros papéis rasgados e envelhecidos dali. Esse parecia ter sido guardado com um certo cuidado, quase com carinho.Jonas desdobrou o bilhete.A caligrafia era trêmula, quase hesitante, e não era a mesma da mãe nem da moradora — era de outra pessoa."Minha querida Elisa,""Sei que você acha que pode me proteger, que o que fizemos pode ser esquecido...""Mas eu sinto no ar, a cada noite, quando as luzes piscam e o vento traz aquele cheiro de ferro e cinzas.""Eles não esqueceram.""Se alguma coisa acontecer, se a névoa voltar, saiba que não foi cul
Jonas manteve os olhos fechados por alguns minutos, tentando organizar o caos que havia se instalado na própria mente.A cada respiração, era como se a névoa lá fora ganhasse corpo, como se pressionasse contra as paredes, querendo invadir até os lugares mais escondidos do prédio."Não é só um surto... não é só um acidente.""Isso foi provocado."As peças começavam a se encaixar, ainda que de forma tortuosa.Sua mãe sabia. Dona Tereza sabia. Talvez Camila e Victor soubessem também.Algo aconteceu no passado — algo que eles tentaram esconder ou consertar — e que agora cobrava seu preço. Um ciclo que recomeçava, exatamente como as cartas e bilhetes insinuavam.O altar... o portal... a escolha dos nomes.O nome dele.Jonas sentiu um peso no peito. Desde a infância, sempre teve sonhos estranhos. Sempre sentiu uma ligação incômoda com coisas que não sabia explicar. Era como se algo estivesse adormecido dentro dele. Algo que talvez eles soubessem, mas nunca tiveram coragem de contar.E agora
Jonas se virou ao ouvir o som.Passos.Claramente passos pesados, ecoando pela escada de concreto.Ele congelou, segurando a respiração. O cano de ferro firme em mãos, a lanterna oscilando entre os dedos suados. O som vinha de baixo, subindo lentamente, degrau por degrau.Um rangido seco.Mais um.E então, silêncio.Jonas recuou até a porta do apartamento, o coração martelando no peito. A névoa ainda serpenteava pelo corredor, tornando difícil ver além de alguns metros. A lanterna mal ajudava — a luz cortava a névoa como se ela tivesse peso, revelando apenas vultos turvos.Ele apontou para a escada, prendendo o fôlego.Nada.Deu dois passos cautelosos até o patamar, a sensação incômoda de ser observado arrepiando sua nuca.Olhou para baixo.Olhou para cima.Nenhum movimento.Apenas a mesma névoa densa, os mesmos degraus sujos de marcas escuras, e aquele cheiro adocicado, de coisa estragada.O som... havia sumido.Como se nunca tivesse existido.Jonas sentiu um arrepio correr pela espi
Jonas respirou fundo, apertando o mapa amassado na mão suada. A escada diante dele parecia mais longa agora, como se os degraus se estendessem além do possível. Cada passo ecoava entre as paredes úmidas e descascadas.Subiu devagar até o próximo andar — o sétimo.Ali, algo imediatamente o incomodou.O cheiro.Era diferente dos andares abaixo — um odor metálico misturado com algo rançoso, adocicado. Como carne deixada ao calor por dias. Jonas cobriu o rosto com a manga da camisa, tentando abafar a ânsia que crescia na garganta.A luz natural que entrava pelas janelas do corredor era ainda mais fraca naquele trecho do prédio. As lâmpadas do teto, apagadas pela falta de energia, pareciam olhos mortos olhando para ele.E então ele percebeu: no chão, espalhados como uma trilha irregular, havia símbolos desenhados com alguma substância escura — talvez sangue seco. Marcas feitas à mão, sem precisão, mas carregadas de intenção. Círculos, setas, palavras que ele não conseguia ler direito.Pert
Enquanto atravessava o corredor de volta, com a lanterna já fraca, Jonas não parava de pensar na foto que havia visto no outro apartamento — aquela do bar universitário. A figura borrada no fundo... agora parecia ter o mesmo formato da máscara do homem da foto ritualística.Ele parou por um instante, encostando na parede, o peito subindo e descendo rápido.— Não pode ser coincidência...Era o mesmo homem. A mesma máscara. O mesmo padrão.O colar que havia encontrado com a vizinha queimava de leve no bolso. Estava começando a achar que aquilo não era apenas um símbolo... mas uma chave.Lá fora, a cidade estava em silêncio, abafada pelo peso das nuvens de fim de primavera. A luz fraca que passava pelas janelas dos corredores revelava o concreto úmido, as frestas nas paredes, e o som distante de São Paulo à noite — buzinas, sirenes, vida pulsando... mas estranhamente distante agora. Como se ele estivesse em outro lugar, mesmo estando no coração da cidade.Descer não era uma opção.Ele le
Jonas deu um passo para trás, o coração acelerado.A maçaneta parecia ter se movido... mas agora, parada, imóvel, não mostrava sinal algum de que havia sido tocada.Ele ficou ali por alguns segundos, encarando a porta com os punhos cerrados, o cano levantado. O som da própria respiração era tudo que conseguia ouvir. Nenhuma outra batida. Nenhum rangido.“Impressão sua. Só isso. Você tá cansado. Tá... ficando paranoico.”Tentando recuperar o controle, virou-se de novo para a sala. Precisava encontrar algo útil, e rápido. Não podia continuar contando com a sorte — ou com a luz fraca que escorria pelas frestas das janelas.Começou a vasculhar o apartamento com cuidado. As sombras dançavam nas paredes, compridas e distorcidas. Abriu gavetas, empurrou armários.Na cozinha, depois de alguns minutos, encontrou uma caixa plástica de ferramentas. Revirou o conteúdo — chaves de fenda, pilhas velhas, uma fita isolante ressecada — e enfim, no fundo, algo que o fez suspirar aliviado:Uma lanterna.
Jonas fechou a porta do 502 devagar, trancando-a com a chave de Tereza. O corredor estava do mesmo jeito — sombrio, silencioso, com a luz da vela ainda oscilando no chão, onde ele a deixara presa entre uma garrafa quebrada e uma fita adesiva improvisada.O cheiro de mofo e ferrugem parecia mais denso agora. O elevador permanecia imóvel, com o visor apagado. Ele olhou para a carta outra vez em seu bolso. “Nunca confie na luz do elevador.”Subir. Precisava subir.Se havia algo acontecendo naquele prédio — e estava cada vez mais claro que havia —, as respostas não estavam apenas na memória esquecida de Tereza. Talvez outro morador soubesse de algo. Ou talvez…Ele empunhou o cano com firmeza e começou a subir os degraus, passando pelos degraus que rangiam sob seus pés. A luz de emergência no teto piscava a cada três segundos, mergulhando tudo em um ritmo quase hipnótico de sombra e luz.Chegou ao andar de cima — o 6º — e parou.O corredor estava ainda mais escuro. A maioria das portas fec
O zunido dentro da cabeça de Jonas aumentava, agora pulsando como uma sirene abafada que vibrava em seus ossos. Ele se levantou da cama com dificuldade, sentindo as pernas fracas, como se o quarto estivesse sendo drenado de energia.Foi quando ouviu um som vindo da sala.Algo se arrastando.Ele congelou. A respiração ficou presa no peito. O som era ritmado, úmido — como carne raspando no carpete. Lento. Determinado.Jonas apagou a lanterna do celular e encostou-se à parede do corredor, de volta à penumbra. Cada segundo parecia se esticar como elástico prestes a romper. O arrastar parou por um momento… e então recomeçou, mais próximo.Ele sabia o que era.Tereza.Ou o que quer que tivesse se tornado.A dúvida bateu. Será que ela estava de pé de novo? Como? Ele havia acertado ela com força… Ou talvez não fosse mais ela quem andava com aquele corpo.Jonas fechou a caixa de madeira e enfiou a carta mais recente no bolso da calça. Agarrou o facão preso à cintura. Estava úmido — ele não sab