Demir despertava com a imagem de Elara nas mãos. Sufocava, parava de lutar, desfalecendo. Por mais que fosse uma ideia absurda, não deixava de lhe dar alguma satisfação, mesmo diante da repulsa de matar alguém, ainda que fosse aquela mulher. Ela era arrogante, ácida, irritante, aviltante. Ele tinha um sem número de adjetivos para descrevê-la, não muitos positivos, mas nada justificaria matá-la tão cruelmente. A cena vivida ainda habitava sua mente, o corpo que amolecia, lentamente, o olhar apavorado e as mãos que lutavam contra o sufocamento iminente. Sentir aquele estalo abafado, de som quase grave, de algo que se rompia sob a carne era estranhamente prazeroso e, simultaneamente, lhe causava um algo que o enojava de si mesmo. "Onde isso virou um ódio tão profundo? Ela é o cão, mas nada justificaria matar." Ele se pegava pensando naquele sonho estranho. Olhava o pequeno modelo, feito de qualquer jeito, sobre a mesa de um café em Balat. "Será que, com os materiais apropriados, ela seria capaz de criar um modelo maior e melhor?" Ele se movia. Pegou o pequeno modelo, já seco. Era delicado, dava forma ao desenho da pasta, perfeito, detalhado, em linhas elegantes.
******************** Na biblioteca, Elara procurava novamente pela pasta, sem sucesso. Já estava chateada, pouco restava além de suas memórias. Foi até uma papelaria e retornou, com mais materiais. Se acomodava sobre as mesas de desenho e voltava a desenvolver os desenhos. Numa das bordas, desenhava a joia do seu pesadelo, se forçava a reviver aquela ansiedade que lhe sufocava, vivendo o tormento outra vez, desenhava cada um dos símbolos, olhava a pulseira de pedra, que lhe servia também de bracelete. Símbolos similares, como se o da joia ancestral que usava tivesse uma escrita mais moderna, evoluída daqueles símbolos que brilhavam a luz dourada dos últimos momentos daquela angústia. Separava os conjuntos de símbolos, tentava encontrar alguma ordem ou similaridade, ver algo diferente. Se fosse uma pirâmide ou um modelo mágico arcaico, como as lendas contavam, poderia fazer mais sentido. Ela tentava imaginar uma forma como aquilo poderia funcionar. O modelo do coração de cerâmica lhe causava um arrepio frio na coluna. Era algo cuja visão se tornava angustiante. Demir, entrando no lugar, a via nas mesas de estudos individuais. Distraída, o rosto apoiado sobre a mão, olhos fechados, respirava, pausadamente. Ele revivia as visões de esganar aquela mulher. Aproximou-se, silencioso. Via os desenhos, um novo modelo surgia, de uma joia rara, de símbolos antigos, o bracelete sobre a mesa. — Pelo menos sabe pintar a dedo. - Ele sussurrou, desequilibrando-a da banqueta, ela escorregou, em queda livre. Em um ato reflexo, ele a pegava no ar, debruçada nos braços do homem. O olhar de uma lebre diante de seu predador, assustada, ruborizada, os lábios bonitos, entreabertos. Elara olhava-o diretamente no olhos, verdes como esmeraldas, intimidavam-na. Ela começava a empalidecer nos braços dele. - Vou soltar você, sua bruxa. - Ele a soltou, o baque seco no chão. Ela caiu sentada, pressionando os olhos, com o rosto baixo. Aceitava a humilhação. Ele via os desenhos dela. Tirou da bolsa a pasta e os papéis do café. Na mão, tinha o pequeno modelo dela. - Me explica como fez isso e paro de te provocar. — Não. - Ela o olhou, os óculos na ponta do nariz, aquele olhar, debaixo, suplicante. "Pra quê ser tão bonita se é uma praga?" Ele considerava, vendo o rosto ruborizado. — Tudo bem. - Ele recolhia as anotações e as enfiava na bolsa. — Me devolva, são meus. - Ela exigiu, levantando-se. — Não. - Ele se virou, saindo. — Você só quer o modelo? - Ela perguntou, era só algo qualquer, que qualquer antropólogo saberia fazer. — Sim. Tenho uma obra que... - Ele começava a se gabar. — Eu li seu livro de contos mágicos, vai por mim. - Ela voltou para a banqueta. - Deveria mudar o seu gênero literário. Seria ótimo criando historinhas de fantasia para adolescentes. — Você é uma bruxa. - Ele afirmou, desdenhoso. — E você deve ser minha maldição, para dizer o mínimo. - Elara voltava ao desenho da joia. — Onde viu isso? - Ele se interessava, pegando o bracelete para olhar. Ela o tomou do homem. — Não estamos aqui para fazer amizade. Vou terminar este desenho e faço seu modelo. Você me devolve o que é meu e some da minha vida. - Ela propunha. - Sem perguntas. Sem conversa. - Elara o percebia olhando fixamente para seu pescoço, engoliu a seco. - E sai de perto de mim. Você me assusta. — Para alguém que lida com evidências, provas e cadáveres é surpreendente sentir medo de alguma coisa. - Ele debochou. — Você não está inerte. - Ela pegou suas coisas e saiu de perto de Demir. — Li sua pesquisa sobre "As joias na construção antropológica do poder". - Ele a fez parar. - Por que não terminou a pesquisa? — Sem perguntas. Sem conversa. - Ela repetiu. - É o acordo. — Esse bracelete é parte daquela pesquisa, não é? - Ele a via retomar os passos. - Escuta, já vi o desenho dessa joia de cinco pontas. Responda algumas perguntas e conto onde está? - Ela se detinha outra vez. Voltou para ele, era pequena, mas sabia se impor. - São provas concretas. - Ele estendeu a mão para o acordo. Ela parecia se assustar. Recuava um passo com o avanço da mão do homem. "Será coisa de reencarnação?" Ele zombava mentalmente. - Temos um acordo? — Temos. - A curiosidade dela falava mais alto. — Ainda tem sua licença? - Ele perguntou, mantendo a distância entre eles. — Apenas a de pesquisadora, pela UNESCO. - Ela indicava, surpreendendo-o. - Meu distintivo está junto com minha arma, graças a você. — Eu não fiz nada! - Ele se ultrajava com a acusação. — Consciência de psicopata não é um traço encantador da personalidade de um homem. - Ela o cortava com o olhar. — Que você é grosseira, sabemos. - Ele a aviltava. - Então eu sou o culpado por ser o último? Não é injusto me atribuir a culpa de gente que não conheço? Certamente, não sou um caso isolado. — Certamente, não! - Ela respondia, com deboche e o olhar fulminante. Aquilo era sexy. - Idiotas nascem aos milhões todos os dias. — Por que não terminou a pesquisa? A tese não tem falhas lógicas. - Ele insistia.