— Argh! - Elara se virou, abruptamento, socando o ar. Demir agradecia, intimamente, pelo autocontrole daquela peste que marchou para longe dele, com os dentes cerrados, o maxilar travado.
— Vamos continuar com o trabalho. - Demir determinou, sério. Voltavam a lidar com o chão barrento, procurando, com pás, qualquer coisa que poderia servir ao propósito que se lançavam. ******************** Elara espezinhou uma poça de água, limpando o solado dos coturnos. Entrou em uma papelaria, comprou um fichário simples, papel e outras miudezas. De cabeça quente, tentava resgatar as informações e os desenhos, acomodada a um café próximo da papelaria. Sentia algo ruim no estômago. "Eu não costumo passar mal." Ela se estranhava. "Algo está muito errado." Ela sentia o corpo pesar a vista turvar. Anotou um nome e um telefone. ******************** Demir assistia uma ambulância levar o corpo de uma mulher, desacordada, um policial fazia uma ligação. Elara estava sendo levada e ele, de certa forma, se satisfazia, sendo assaltado pela imagem dela sob seu corpo, o pescoço em suas mãos, que ele apertava, firme e lentamente. Ele se surpreendia com o pensamento intrusivo e selvagem, chacoalhando a cabeça para afugentar aquele pensamento sombrio e repentino que o inflava com um desejo mais forte do que imaginava que podia odiar alguém. Sobre uma mesa, um pequeno modelo do coração cerâmico, feito de massa de modelar, se mostrava ao lado de um desenho. Ela havia reproduzido o objeto e uma pequena escala, era precioso. Outras anotações e desenhos, em traços, ao lado do café, intocado. Via a pessoa, lívida, ser levada pela emergência. Pegou os objetos e os guardou, levando o precioso item consigo. Demandava secagem, mas era perfeito, finamente esculpido. No carro, ele consultava a pasta outra vez, havia um endereço nele, em Sultanahmet. Decidiu ir até lá. Chegava a uma loja de antiguidades muito renomada por sua qualidade e suas certificações inexplicavelmente precisas. — Boa tarde. - Demir entrou, cumprimentando ao velho antiquarista atrás do balcão. - O senhor conhece esta peça? - Apresentou a pasta. — Boa tarde. - O homem lhe estendeu a mão, para pegar a pasta. - Sim. Quer vender? O conjunto completo vale mais. - Ele ofereceu. - Quando quer? — Não está à venda. Encontrei na biblioteca e quero devolver a quem pertença. - Ele disse, cativante. Parecia ser um homem caloroso e gentil. — Deixe no departamento de polícia ou no prédio da polícia técnica. - Ele indicou. - Em nome de Deniz. — Obrigado. - Demir saiu, não seguiria as instruções. De tudo, levava tudo consigo, o pequeno modelo dela, construído de forma genial, lhe chama mais a atenção. Ele entrou em seu carro. Um flash o tomava, o peito dela aberto, via as próprias mãos em vermelho, lavadas naquele líquido, o coração dela arrancado, ao lado do corpo, o peito aberto e o movimento depositando aquela peça cerâmica no lugar do órgão, jogado na lama, sob a chuva caudalosa. Os lábios entreabertos, a cabeça curvada para o alto, como um anjo pintado, ao reverso, no chão de uma catedral italiana. "O que há de errado? Ela não é uma noiva da antiguidade." Ele despertava do delírio. ******************** Depois de algum tempo, Elara voltou a si, na emergência. — Doutora Elara? Está bem? - O enfermeiro perguntou. Ela espremeu os olhos, a cabeça doía, terrivelmente. Algo parecia fora do lugar ainda. — Minha cabeça dói. - Ela se queixou. — Já a examinamos, a senhora desmaiou em um café em Balat. Lembra disso? - Ele indicou. Elara confirmava com um maneio delicado. — Tinha um caderno e um modelo lá. Foram trazidos? - Ela se preocupava. — Não, senhora. Nada do tipo. Apenas você. Lamento. - Ele negou com um gesto. - Vou pedir ao médico que a avalie. — Obrigada. - Ela se sentou, parecia que o estômago estava vazio, doía, assim como a cabeça e os olhos. O peito se comprimia. "Eu não sou ansiosa." Ela detectava, pressionando o meio do tórax para aliviar o desconforto. Elara voltava para o café depois de ser liberada, lá, nada indicava a existência do caderno ou do modelo. Ela suspirou, pesadamente. A compressão no peito, os olhos ardentes, aquilo a incomodava sobremaneira. Em seu apartamento, desabou sobre o sofá, ofegante e exausta. Adormeceu. ******************** — Desperte! - A voz retumbante do homem a despertava. Elara acordou, via-se em algum lugar de conto de fadas, cercada por ouro, mármore e tecidos de cores impressionantes, sobre uma cama larga, desarrumada, de lençóis de fina seda branca. Percebia o marajá à sua frente. O homem, vestido em preto, branco e vermelho, adornado de jóias, com o turbante sobre a cabeça, preso por uma joia que lhe atraía o olhar: uma estrela, de cinco pontas, esculpida em pedra negra, com o ouro reluzindo a luz do lugar em símbolos e letras que ela reconhecia fracamente, sem conseguir encontrar na mente. Estava atordoada. - Dance para mim! - Ele ordenou. Elara percebia o Sheik diante dela. "Demir?" Ela franziu o cenho, com o pensamento absurdo. "Pesadelo." Ela se certificava. — Nem morta! - Ela respondeu, afrontosa. O homem começava a se mover. Atrás dele, um coração de cerâmica, sobre um pedestal em forma de coluna, estava aninhado sobre uma almofada de tecido vermelho, profundo. Ele rodeou o móvel, levando o joelho sobre a cama, começava a engatinhar até ela. Elara se desesperava, percebia-se vestida como uma mulher da antiguidade persa, mas havia elementos nas roupas deles que não coincidiam com a história e nem com os registros. Ela se afastava. Olhou para fora do leito, um lago, de um líquido escuro, reluzia um vermelho suave. Pareciam as cisternas da Catedral. Era horripilante. O vento, quente e seco, soprava as cortinas do dossel, com as barras de um degradê vermelho, úmido e pesado. "Sangue!" Ela se espantava. Quando voltou o olhar para o homem, sentiu sua traqueia se comprimrir. Ele a estrangulava, com o olhar insano, sufocava-a. ******************** Demir se via em um grande quarto, em um palácio. Na cama real, uma linda odalisca, em trajes brancos e dourados, de fina compleição, longos cabelos castanhos soltos, em meio a almofadas, dormia, confortavelmente, coberta de joias, com o bracelete negro no braço esquerdo, pouco acima de um hematoma roxo. — Desperte! - Ele ordenou à mulher, de uma vez. Despertando-a em um sobressalto. Arfava. Tinha o busto bonito, com as vestes que repousavam, soltas, sobre a pele. - Dance para mim! - Ele determinou, percebia a mulher mais detidamente. Era Elara, que franzia o cenho, como se o estranhasse e o reconhecesse ao mesmo tempo. — Nem morta! - Ela respondeu, afrontosa. Instintivamente, ele rodeou a cama, subindo pelo móvel. Ela recuava, assustada, olhou para fora, os olhos arregalados, mas não fugia, como se esperava. Em um impulso, ele atou as mãos em volta do pescoço dela, sentindo o estalar de algo por dentro, apertava, lenta e firmemente. ******************** Elara despertou, sufocada, em um salto, ofegava, procurando o ar que lhe faltava. Sentia o coração na boca, batendo forte e rapidamente. Angustiada, olhava o próprio pescoço no espelho. Ela estava ilesa, recuperava o fôlego, acalmando-se, apesar daquela pressão sofrível sobre o peito.