Capítulo 2 - Fragmentos que ardem

O cheiro do mar chegou primeiro.

Salgado, úmido, carregado de lembranças que ela nem sabia ter — como se cada partícula de sal trouxesse um nome esquecido.

Depois, uma música abafada — ritmada, quase tribal — e luzes tremeluzindo ao longe, como reflexos distorcidos em poças d’água.

Elize caminhava entre os barcos atracados, a madeira úmida sob os pés. Sentia o couro da jaqueta colando nos braços, o ar da noite grudando nos cílios.

As velas balançavam ao vento, rangendo baixinho, como se sussurrassem histórias de outros tempos.

Não sabia por que estava ali.

Ou por que sorria.

Então, ele apareceu.

Cabelos escuros tingidos de azul, lentes verdes, um sorriso descompromissado — como se fosse o dono da noite. Ele estendeu a mão.

Ela aceitou.

Passou os dedos pelos cabelos dele e riu da tinta que ia se desfazendo.

— Vou virar um smurf — dizia ela, olhando as mãos úmidas da maresia tingidas de azul.

Ele abriu a boca, mas ela não conseguia ouvir o que ele dizia.

Correram juntos por vielas estreitas, entre risos abafados e beijos roubados. Quando ele a segurou pela cintura e ela fechou os olhos para o beijo, tudo girou.

E quando os abriu… já não estavam mais ali.

Agora era um quarto.

Sem janelas.

Um choro. Baixo, insistente.

Elize piscou várias vezes, confusa. Havia um berço. Um bebê pequeno sacudia os braços. Ela tentou se aproximar, mas antes que seus dedos encostassem no cobertor, uma mulher entrou e o pegou no colo.

Elize deu um passo para trás, instintivamente. O peito apertado. As mãos trêmulas.

Atrás dela, uma presença.

Uma mão firme segurou seu punho com força, e ela sentiu um calor agudo queimando a pele.

Olhou.

Não havia nada ali… até que a marca surgiu, lentamente, como se estivesse sendo escrita com ferro em brasa.

Escura. Irremovível.

— Não! — ela sussurrou, recuando.

E correu.

Correu por corredores que não lembrava ter cruzado, empurrou portas que não sabia de onde vinham. Até que, enfim, saltou dentro de um ônibus quase vazio.

Não olhou para trás.

No letreiro da frente, o nome da cidade piscava entre falhas de iluminação:

Morada Nova.

São Vilar.

Caminho Alto.

Ela não sabia para onde estava indo. Só sabia que precisava ir.

As portas se fecharam. O ônibus saiu em disparada.

De repente, freou bruscamente, ao mesmo tempo em que buzinava com toda força.

Enquanto era lançada para frente, o som da buzina se misturou ao do despertador, e Elize, num salto, sentou-se na cama.

TRIIIIM!

O som cortou tudo.

O alarme do celular tocava freneticamente — já era a terceira vez que tocava sem ser atendido.

Elize abriu os olhos, ofegante.

O quarto ainda escuro, o teto familiar.

Mas a sensação de que algo a havia seguido do sonho… ainda estava ali.

Ela desligou o celular enquanto esfregava os olhos e se jogou novamente na cama. Ficou deitada por mais um instante, encarando o teto como quem procurava respostas.

Depois, respirou fundo.

Mais um dia.

Mais um segredo para engolir.

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