— Bom dia, mundo ingrato — resmungou com a voz rouca, mas logo soltou uma risada baixinha.
A claridade ainda não dava as caras, e o quarto permanecia envolto numa penumbra azulada. Com movimentos leves, ela esticou o braço outra vez e alcançou o relógio de pulso. O prendeu com cuidado, de forma que a pulseira ficasse firme sobre o punho esquerdo — onde a pele, embora coberta, ainda parecia pulsar memórias que ela preferia manter dormentes. Levantou-se num salto, sem perder tempo com preguiça. O frio do chão não foi páreo para a energia inquieta que ela sempre carregava nas manhãs, como se cada amanhecer fosse uma chance de recomeçar — mesmo depois de sonhos estranhos. Caminhou até a janela e empurrou as folhas de madeira, deixando que a brisa fresca da madrugada invadisse o quarto. O ar tinha cheiro de sal e café distante. Ao fundo, o mar dormia quieto, embalado pela curva suave da Baía das Abelhas, com os barcos ainda imóveis nas águas prateadas. — É hoje que a vida muda. Ou pelo menos, que o café fica bom — disse para si mesma, sorrindo. Ela já estava colocando a água para esquentar na cafeteira quando duas buzinas curtas soaram na rua. Elize olhou no relógio. Pontual, como sempre. Subiu até a sacada e fez sinal com a mão.— Pode subir, Madá! Estou passando café!
Do chão, Madalena respondeu com um gesto e um sorrisinho sonolento. Em instantes, os passos dela ecoavam pela escadinha lateral que levava até o pequeno sobrado onde Elize morava, no segundo andar. — Você é meu anjo da guarda de avental, sabia? — disse Madalena, entrando no apartamento com as bochechas coradas do frio. — Passei a madrugada me convencendo a sair da cama. Aí lembrei do seu café e... cá estou. — Tá vendo como eu sirvo pra alguma coisa? — Elize respondeu, entregando uma caneca fumegante. — Só não faz barulho demais. O senhor Osvaldo já ameaçou me despejar uma vez porque gargalhei às seis da manhã com um vídeo de pinguim. — Não prometo nada se você contar outra história das clientes do café. A de ontem eu quase engasguei — respondeu Madalena, se esforçando para manter a risada contida. As duas se acomodaram à mesa, falando baixo e rindo mais com os olhos do que com o som. Conversaram sobre o turno do dia, sobre o estoque de pão francês que provavelmente viria errado — de novo — e tentaram adivinhar quem seria a primeira cliente resmungona da manhã. — Eu aposto na dona Carmem. Aquela mulher tem um relógio biológico afinado com o mau humor — disse Elize, enquanto lavava duas colheres na pia. — Eu já sonhei com ela discutindo com a máquina de cartão. Não duvido de nada. Riram contidas, cúmplices naquele ritual que antecedia os dias cheios. Ao terminar o café, Elize caminhou até a janela mais uma vez. O céu já se tingia de laranja, e os primeiros raios de sol subiam timidamente por trás do mar calmo. A água brilhava feito espelho. Por um instante, ela ficou ali, apenas olhando. Suspiro leve. Um pensamento que quase escapou. Fechou a janela devagar e, ao se virar para Madalena, puxou um sorriso no canto da boca. — Vamos encarar mais um dia? — Nascemos pra isso, meu bem — respondeu Madalena, já indo em direção à porta. E assim, com café no estômago e coragem no rosto, Elize seguiu para mais uma manhã comum — daquelas que o destino adora transformar em ponto de virada.