A Baía das Abelhas dormia.
Era sempre assim de madrugada — um silêncio tão profundo que até o som das ondas parecia pedir permissão antes de tocar a costa. Sentada diante da pequena escrivaninha encostada na parede, Elize mal percebia o tempo passar. Vários recortes de jornais e revistas sobre casos famosos da justiça se amontoavam numa lousa de cortiça à sua frente. Os livros empilhados ao redor formavam uma muralha de páginas e post-its coloridos, como se quisessem protegê-la das memórias que insistiam em invadir seus pensamentos. Rabiscava anotações apressadas, os olhos cansados tentando absorver cada parágrafo de direito penal, até que o ponteiro do relógio sussurrou um alerta: passava das duas da manhã. Ela soltou um suspiro resignado, empurrou a cadeira para trás e caminhou até a janela ainda aberta, por onde o vento frio da madrugada entrava carregado do cheiro salgado do mar. Por um instante, permitiu-se observar as luzes distantes refletidas na baía e o silêncio que só a noite conhece. Elize apoiou os cotovelos no parapeito gasto, o olhar perdido no cenário abaixo. Do alto do pequeno sobrado na encosta da Baía, conseguia ver toda a curva da marina abraçada pelas colinas brancas, onde as casinhas empilhadas pareciam blocos de cal, iluminadas apenas pela luz da lua cheia. As ruelas serpenteavam pelos morros como fios prateados, estreitas demais para carros — mas perfeitas para sua pequena scooter vermelha, estacionada como um grilo cansado no beco ao lado do prédio. Ela adorava aquele contraste: o caos durante o dia, com turistas se espremendo entre lojinhas e cafés; e a paz absoluta da madrugada, como se o mundo ali respirasse em câmera lenta. — Está tarde — suspirou fundo. — Se fosse há alguns anos… eu estaria lá embaixo. No meio daqueles barcos, esperando o momento certo para... — seus lábios se fecharam, como se trancassem um segredo. — Esquece isso, Elize. O passado não importa mais. Não interessa pra ninguém… e muito menos pra você. Fechou a janela com cuidado para não fazer barulho, virou-se devagar e caminhou pelo quarto quase às escuras. O chão de madeira rangia sob seus pés descalços, e o piso gelado despertou a urgência de se deitar. Livros e cadernos cobriam a cama desfeita — um mar de rabiscos, marca-textos e páginas dobradas. Ela queria ser melhor, mas a faculdade de Direito lhe consumia tudo: tempo, energia e até os pensamentos livres. Ainda assim, continuava — dia após dia — como quem tem algo a provar. Talvez para si mesma. Sentou-se na beirada da cama e empurrou os livros com a mão, criando espaço suficiente apenas para o corpo. Deitou-se de costas com um suspiro, puxando o lençol amarrotado. Assim que encostou a cabeça no travesseiro, esticou o braço e apagou o abajur — a luz quente desapareceu, mergulhando o quarto numa penumbra suave, iluminada apenas por um fiapo de luar que escapava pelas frestas da janela. No escuro, tirou o relógio do pulso com delicadeza, os dedos tateando com familiaridade. Era quase automático esconder aquela marca, mesmo quando ninguém podia vê-la. O frio do metal deixou sua pele livre por um instante, mas o gesto logo foi esquecido enquanto se ajeitava entre os livros. Permaneceu com o olhar fixo no teto por alguns segundos. Sentiu os olhos pesados enquanto pensava nas provas do dia seguinte. Lembrou-se que em poucas horas estaria de pé para trabalhar. E assim, num silêncio embalado pelas ondas da Baía, Elize finalmente adormeceu.