O céu sobre Istambul amanheceu pålido, como se refletisse a confusão que queimava silenciosa no peito de Defne Topal. A cidade parecia se mover em cùmera lenta, mas o tempo dentro dela corria råpido demais.
O plano começava a desmoronar por dentro. O que antes era estratĂ©gia, agora ganhava textura emocional. Cada palavra trocada com Ămer, cada olhar sustentado por mais de trĂȘs segundos, deixava Defne mais prĂłxima de um abismo que nĂŁo sabia se deveria atravessar.
Na empresa, o clima também mudara. Pamir ocupava os espaços com naturalidade provocadora. Durante as reuniÔes, ele lançava comentårios envoltos em ironia, e mesmo os elogios pareciam calculados para desestabilizar.
â VocĂȘ tem potencial, Defne. â disse ele, apĂłs uma sugestĂŁo dela sobre a campanha nova.
â SĂł precisa deixar de ser tĂŁo... obediente.
Ela desviou o olhar. Pamir enxergava demais. E talvez soubesse â ou suspeitasse â do que ela realmente fazia ali.
Mas o que mais a preocupava era Ămer. Ele observava tudo com o semblante calmo e os olhos inquietos. Estava mais reservado do que nunca, como se algo em seu universo estivesse se rearranjando.
Uma tarde, apĂłs a Ășltima reuniĂŁo do dia, Ămer a chamou para a sala de design â um espaço que ele raramente compartilhava com alguĂ©m.
â Quero te mostrar um modelo novo â disse ele, sem expressĂŁo.
Sobre a mesa, havia um esboço inacabado de um sapato feminino: clĂĄssico, elegante, mas com um detalhe inesperado â uma pequena tira vermelha em contraste. Intensa. Desafiadora.
â O vermelho Ă© estranho pra vocĂȘ.
â observou Defne, curiosa.
â Ă.
â ele respondeu.
â Mas Ă s vezes, o que Ă© estranho... Ă© o que faz a gente parar de fingir controle.
Ela respirou fundo.
â Ămer... â começou, mas ele a interrompeu.
â Eu nĂŁo sou bom com pessoas. Sou melhor com ideias.
â Ele desviou o olhar. â Mas vocĂȘ⊠vocĂȘ bagunça isso. E eu nĂŁo sei se isso Ă© bom ou perigoso.
Defne queria dizer a verdade. Tudo. Ali, naquele instante. Mas o medo de perder o pouco que havia conquistado travou sua garganta.
â Eu nĂŁo sou o que pareço ser â foi o que conseguiu dizer, entre silĂȘncio e culpa.
Ele franziu a testa.
â NinguĂ©m Ă©. Mas vocĂȘ estĂĄ mais confusa do que deveria.
Naquela noite, Defne voltou para casa com os pensamentos em turbilhĂŁo. Pegou o celular e digitou uma mensagem para Neriman, mas nĂŁo enviou.
Ela estava prestes a desistir do plano. Ou de si mesma.
O que aconteceria se Ămer descobrisse tudo? E o que aconteceria se ele nunca soubesse⊠mas ela nunca o esquecesse?
E enquanto Istambul dormia, Defne chorava no sofĂĄ, com um croqui vermelho nas mĂŁos â aquele detalhe no sapato parecia o grito silencioso de tudo o que ela queria dizer. Mas ainda nĂŁo podia.
A manhĂŁ seguinte chegou com um aviso silencioso: Defne acordou com o celular vibrando insistentemente. TrĂȘs chamadas perdidas de Neriman e uma mensagem curta â quase uma ordem.
âNos encontramos hoje. Urgente.â
Defne jĂĄ sabia que os momentos de paz tinham prazo curto. Desde o encontro com Ămer na sala de design, sua mente girava em cĂrculos. O sapato vermelho, a confissĂŁo parcial, os olhos dele que pareciam querer decifrĂĄ-la â tudo isso a deixava mais vulnerĂĄvel do que a missĂŁo permitia.
No cafĂ© da tarde, em um restaurante discreto em BeĆiktaĆ, Neriman estava impaciente.
â VocĂȘ estĂĄ se perdendo. â disse, sem preĂąmbulo.
â Ele te confunde? Lembre-se: a missĂŁo Ă© sobre dinheiro. Foco.
Defne apertou a xĂcara entre os dedos, quase como se pudesse extrair força do calor do chĂĄ.
â Ele nĂŁo Ă© como eu pensava â respondeu.
â E talvez eu tambĂ©m nĂŁo seja.
Neriman encarou-a com olhos afiados.
â EntĂŁo descubra quem vocĂȘ Ă©. RĂĄpido. Porque se Ămer descobrir antes... tudo explode.
Na empresa, Defne tentava manter a rotina. Mas o olhar de Ămer, sempre atento, parecia escavar verdades que nem ela entendia direito.
â EstĂĄ tudo bem? â ele perguntou num corredor vazio, com voz baixa.
â EstĂĄ... sĂł um pouco de dor de cabeça â mentiu ela.
Ele nĂŁo respondeu, mas estendeu um pequeno frasco de Ăłleo essencial.
â Funciona. Eu uso quando as ideias viram labirinto.
Ela sorriu, surpresa. Ele nĂŁo era fĂĄcil â mas quando abria frestas, dizia tudo com gestos sutis.
Naquela tarde, o inesperado: Serdar, o fotĂłgrafo da campanha, se envolveu num escĂąndalo com uma modelo e a notĂcia se espalhou, ameaçando o cronograma do lançamento.
Pamir, sempre atento Ă oportunidade, sugeriu uma coletiva emergencial. E quem ele escolheu para falar Ă imprensa? Defne.
â VocĂȘ Ă© boa sob pressĂŁo. Mostre isso. â disse, com um sorriso que mais parecia provocação.
Na sala de imprensa, os flashes estouravam como tiros. Defne falou com firmeza, com um sorriso treinado, mas por dentro, tudo tremia.
Enquanto saĂa da coletiva, Ămer a esperava do lado de fora.
â VocĂȘ foi impressionante lĂĄ dentro.
â Obrigada⊠â disse ela, mas ele nĂŁo a deixava sair pela porta fĂĄcil.
â SĂł me diga⊠vocĂȘ estĂĄ aqui por escolha ou obrigação?
Ela o encarou. Naquele momento, entre escĂąndalos e olhares, o mundo parecia ter parado.
â Estou aqui porque... algo em mim quis estar.
Naquela noite, Neriman ligou.
â Boa performance. Mas chegou a hora de elevar o jogo. Quero provas de que vocĂȘ pode controlar Ămer. Ou... o plano muda.
Defne desligou sem responder. E pela primeira vez, considerou nĂŁo seguir ordens.