Defne jĂĄ nĂŁo sabia se continuava no plano... ou fingia que ele jamais existiu.
Desde a coletiva, desde o elogio estranho de Pamir, desde os olhares de Ămer cada vez mais demorados, tudo parecia diferente. O contrato invisĂvel que ela carregava no peito começava a sufocar.
E entĂŁo, Neriman exigiu um novo passo.
â Quero que vocĂȘ o convide para jantar. Particular. Intimista. Faça ele confiar, faça ele desejar. Isso precisa andar, Defne! â disse, apertando uma taça de vinho como se controlasse o destino com os dedos.
â Ele nĂŁo Ă© manipulĂĄvel.
â respondeu Defne, a voz firme e baixa.
â E o que vocĂȘ quer⊠nĂŁo acontece com fĂłrmulas.
â EntĂŁo descubra a fĂłrmula certa. Ou abandone a missĂŁo.
Defne saiu da casa com o coração em colapso. Ela nĂŁo sabia se mentir para Ămer seria o maior erro â ou se nĂŁo cumprir o plano seria condenar o irmĂŁo. E no meio disso tudo⊠o que ela sentia jĂĄ nĂŁo cabia em categoria alguma.
Na empresa, o ambiente parecia carregado.
Sinan, sempre amigĂĄvel, percebeu o peso nos ombros dela.
â VocĂȘ anda diferente. Mais⊠densa.
â SĂł pressĂŁo.
â Quer um conselho? Ămer nĂŁo sabe lidar com gente que muda de comportamento sem dar explicaçÔes. Se vocĂȘ estĂĄ balançando, seja direta. Ou prepare-se para a distĂąncia.
Ela assentiu. Mas como explicar a verdade quando essa verdade destruiria tudo?
Na tarde de sexta-feira, Defne tomou coragem.
Foi atĂ© a sala de criação. Ămer estava sĂł, desenhando algo sobre papel vegetal. Um sapato masculino com detalhes inesperados â elegante, mas com um zĂper oculto. Dualidade. Como ele.
â Eu queria te convidar pra jantar. SĂł nĂłs dois.
â Jantar?
â Sim. Na minha casa.
â Isso Ă© comum para assistentes?
â NĂŁo. Mas eu tambĂ©m nĂŁo sou exatamente comum.
â Hum.
Ele não disse sim. Mas também não recusou.
O jantar foi simples: massa ao molho de iogurte turco, luz baixa, mĂșsica francesa no fundo. Ămer chegou pontualmente, vestindo blazer escuro e aquele olhar que parecia sempre dois passos Ă frente de qualquer jogo.
â VocĂȘ cozinha? â Ăs vezes. â Esperava algo mais⊠performĂĄtico. â Ăs vezes o simples Ă© mais verdadeiro.
Os dois comeram em silĂȘncio por alguns minutos, trocando olhares, sorrisos tĂmidos. A tensĂŁo entre eles jĂĄ nĂŁo era hostil â era quente, frĂĄgil e vibrante.
E entĂŁo ele falou:
â O mundo todo estĂĄ tentando me empurrar para coisas que nĂŁo escolhi. E vocĂȘ, com sua bagunça... parece ter sido a Ășnica coisa que entrou sem pedir.
Defne tentou sorrir. Mas os olhos ardiam. O plano, o irmão, o contrato⊠nada parecia importar naquele instante. Apenas ele. Apenas ela.
â Eu nĂŁo entrei pra te enganar, Ămer⊠eu juro.
Ele a olhou fixamente.
â Espero que nĂŁo. Porque se vocĂȘ mentir⊠eu nĂŁo saberia como me recuperar.
E naquele momento, Defne soube: o risco jĂĄ nĂŁo era o plano. Era o sentimento.
No domingo pela manhĂŁ, Defne acordou com uma mensagem inesperada. Um nĂșmero desconhecido. Duas palavras: "EstĂĄ na hora." A tensĂŁo percorreu sua espinha como um fio gelado.
Ela sabia que era Pamir.
No cafĂ© da manhĂŁ, tentou agir normalmente. Preparou chĂĄ turco e torradas com tahine. Mas seus dedos tremiam ao passar manteiga. E Ămer notou.
â VocĂȘ estĂĄ diferente.
â NĂŁo dormi bem.
â EstĂĄ com medo de mim?
Ela riu, nervosa.
â Medo? VocĂȘ nunca foi ameaça.
â EntĂŁo do que tem medo?
Ela nĂŁo respondeu. Porque nĂŁo sabia se o maior medo era perder Ămer... ou deixar que ele a conhecesse por completo.
Na agĂȘncia, o clima era outro. Pamir estava lĂĄ, desta vez como consultor externo.
â Bom dia, senhorita Topal.
â O que vocĂȘ quer?
â A pergunta Ă©: o que vocĂȘ ainda quer? Porque estĂĄ deixando o tempo correr... e Neriman jĂĄ cogita trocar a peça.
Defne cerrou os olhos.
â Eu fiz tudo como mandaram.
â NĂŁo. VocĂȘ estĂĄ se apaixonando. E isso⊠estĂĄ fora do contrato.
Durante uma apresentação de coleção, Ămer fez algo inesperado: deixou Defne liderar.
Ela falou sobre cores, tecidos e sensaçÔes. Sobre como moda nĂŁo Ă© sĂł estĂ©tica â Ă© memĂłria, Ă© desejo, Ă© proteção. E quando terminou, o olhar de Ămer nĂŁo era mais sĂł profissional. Era reverĂȘncia. Era afeto.
Mais tarde, na sala dele, ela perguntou:
â Por que me deixou apresentar?
â Porque precisava ver se confiava em vocĂȘ.
â E confiou?
â Pela primeira vez em muito tempo, sim.
Ela quis chorar. Mas sorriu. Porque aquele sentimento... jĂĄ nĂŁo cabia em dor.
No fim do dia, quando todos foram embora, Defne viu Pamir na porta.
â VocĂȘ estĂĄ ultrapassando todos os limites.
â Eu sou o limite. VocĂȘ sĂł se esqueceu.
â Se fizer algo contra eleâŠ
â Quem disse que quero feri-lo? Talvez eu sĂł queira provar que ele nunca te conheceu. E quando isso acontecer⊠vocĂȘ vai perder tudo.
No elevador, Ămer surgiu. Olhou para ela, viu o rosto pĂĄlido.
â EstĂĄ tudo bem?
â NĂŁo. Mas agora nĂŁo dĂĄ pra fugir.
Ele se aproximou, acariciou o rosto dela como se aquilo fosse a Ășnica verdade segura.
â EntĂŁo fica. NĂŁo foge de mim.
Ela o olhou â e pela primeira vez, quis contar tudo.
Mas o mundo que ela habitava não permitia confissÔes. Apenas escolhas. E cada uma delas era um fio entre amor e destruição.