O velório de François e Geneviève Marchand foi marcado para as 11h da manhã, na Capela Imperial de Lausanne, reservada às grandes famílias suíças.
Do lado de fora, os carros oficiais estacionavam em fila.
Do lado de dentro, tudo era mármore branco, arranjos florais discretos e silêncio. Nenhum som era alto. Nem mesmo o lamento dos presentes. A tragédia fora súbita, e ainda pairava no ar como uma nuvem densa que todos evitavam nomear.
As portas se abriram para os primeiros convidados: juízes, políticos, ministros, CEOs de multinacionais, herdeiros de impérios bancários e industriais. Todos vieram prestar homenagem ao casal Marchand — mas muitos também estavam ali por outro motivo:
Isabelle. A única herdeira.
A jovem de luto que, pela primeira vez em anos, se tornava o centro de toda a atenção.
...
Isabelle chegou pontualmente.
Vestia um vestido preto de luto midi, discreto, impecavelmente cortado, com mangas de renda fina e botões antigos no punho. Usava brincos de pérola e um pequeno chapéu com véu cobrindo parte do rosto.
Seus cabelos escuros estavam soltos, caindo em linha reta um pouco acima da cintura. A pele clara contrastava com o preto do traje. E os olhos — os olhos azuis mais tristes da Suíça — pareciam de vidro. Eram belos, mas mortos.
Isabelle caminhava como uma princesa quebrada. Sem drama. Sem lágrimas. Mas com a postura de quem carrega nos ombros um castelo desmoronado.
Sophie caminhava ao lado dela. Claire, a governanta, vinha mais atrás.
Ela cumprimentava os que se aproximavam com um gesto leve de cabeça. Um sussurro de “obrigada”. Um aperto de mão breve. Como uma estátua viva em meio ao luto.
...
Matteo chegou discretamente. Terno preto italiano sob medida. Cabelos bem penteados, barba baixa. O perfume amadeirado discreto, a presença imponente.
Ele não era do tipo que passava despercebido — e nem queria chamar atenção. Mas ali, mesmo entre homens poderosos, Matteo parecia ocupar o espaço com uma densidade diferente. Seus cabelos castanhos escuros, porte atlético, 35 anos, olhos escuros marcantes não permitiam que passasse despercebido.
Foi recebido por um executivo conhecido da área farmacêutica, que o guiou até Isabelle.
— Senhora Marchand Lefevre... este é Matteo Eisenberg, CEO do Grupo Eisenberg. Seu pai tinha grande apreço por ele. Estavam em negociação recentemente.
Isabelle ergueu os olhos. Por trás do véu, Matteo viu pela primeira vez os olhos mais azuis e doloridos que já havia presenciado.
Ela estendeu a mão, como mandava a etiqueta. Matteo segurou-a com delicadeza.
E então...
Sentiu.
Uma descarga sutil. Um calor inesperado. Uma pulsação que começou nas palmas das mãos e desceu pelo abdômen. Um choque silencioso, quase imperceptível — mas intenso o suficiente para mexer com sua virilidade.
Teve que conter a respiração para não corar. Aquilo nunca acontecia. Nunca. Ele era um homem de controle absoluto. Mas ali, diante daquela mulher devastada... algo dentro dele cedeu.
— Meus sentimentos, senhora Lefevre — disse, com a voz mais grave que o habitual. — Seu pai era um homem de honra. E sua mãe... inesquecível.
Isabelle assentiu.
— Obrigada, senhor Eisenberg.
A voz dela era baixa. Perfumada de educação, mas vazia de vida.
E Matteo, que havia apertado milhares de mãos na vida, não queria soltar aquela.
Mas soltou.
E ficou olhando por mais um instante. A silhueta perfeita. O corpo esguio, de modelo internacional. O pescoço delicado. O perfume floral. Os cabelos lisos escuros. A pele sem falha. A dor contida com tanta dignidade.
Ela é a perfeição mais triste que já vi, pensou.
E então...
Claude chegou.
...
Claude surgiu atrás deles com passos firmes, mas expressão calculada. Usava um terno preto impecável, os cabelos perfeitamente penteados. Chegou sorrindo — o tipo de sorriso que não se usa em funerais.
— Matteo Eisenberg — disse, estendendo a mão. — Um prazer revê-lo.
Matteo virou-se e cumprimentou, sem pressa.
— Claude Lefevre.
Claude passou o braço ao redor da cintura de Isabelle, como se quisesse marcá-la. Como se dissesse: minha. E olhou nos olhos de Matteo.
— Obrigado por ter vindo. Meus sogros tinham grande consideração por você.
Matteo respondeu com um leve aceno, os olhos passando de Claude para Isabelle.
E naquele instante, soube.
Ela não era feliz. Não com aquele homem.
Era nítido.
Mesmo de luto, Isabelle parecia mais fria perto do próprio marido. Não havia afeto. Nenhuma conexão visível. Apenas desconforto. Rigidez.
Claude, por sua vez, apertou o quadril dela com sutileza. Matteo viu. E sentiu o sangue ferver de leve. Por que aquilo o incomodava?
Você não a conhece, Eisenberg.
Você nunca se envolveu com ninguém.
Não é problema seu.
Mas... era.
Pela primeira vez na vida, Matteo Eisenberg sentiu pena de uma mulher casada com um homem vivo. Pena, atração, confusão — e algo mais que ele não conseguia nomear.
...
E, do outro lado...
Claude ardia por dentro.
Não por ciúme. Mas por instinto de posse masculina ferida. Não suportava ver outro homem olhando para sua boneca. Isabelle era seu brinquedo. Sua propriedade. E mesmo sem amá-la, odiaria qualquer um que a desejasse.
Porque todo canalha teme ser traído.
Mesmo quando já traiu mil vezes.
E naquele momento, Claude sabia: precisaria vigiar sua esposa como nunca.
Porque Matteo Eisenberg não era um homem qualquer.
Era perigoso.
...
Era como um teatro.
E Isabelle, a protagonista silenciosa da tragédia.
Desde o momento em que chegou à Capela Imperial, sentia-se como se andasse dentro de um sonho frio e nebuloso. Os olhos passavam por ela como lâminas polidas. Sorrisos contidos. Olhares de falsa compaixão. E, entre eles, muitos cálculos invisíveis sendo feitos.
“A única herdeira.”
“Tão jovem... tão bonita...”
“Com quem será que ficará o controle do grupo?”
Ela ouvia os sussurros mesmo sem escutá-los. Conhecia aqueles olhares. Cresceu entre empresários, banqueiros, políticos. Sabia que para muitos ali, o luto era um intervalo. Uma oportunidade.
E ela... era o centro.
A cada novo rosto que se aproximava, um aperto de mão, uma inclinação de cabeça. Alguém dizia algo como “Força, senhora Lefevre”, ou “Seu pai era um gênio”, ou “Você tem a honra de carregar o legado dos Marchand.”
Isabelle sorria levemente. Agradecia. Abaixava o olhar. Repetia os gestos como um robô perfeitamente programado para representar dignidade.
Mas por dentro…
Por dentro, ela gritava.
“Alguém, por favor, me tire daqui.”
“Deus, por que me deixou sozinha?”
“Me devolve eles. Eu trocaria tudo. Tudo.”
Só queria que tudo acabasse. Queria se trancar no quarto. Se encolher no travesseiro. Chorar até dormir. Gritar. Orar. Suplicar.
Ela sempre acreditou em Deus.
E naquela manhã, a única oração que conseguia repetir em silêncio era:
“Me sustenta, Senhor. Me sustenta, porque eu não sei se vou aguentar.”
Foi nesse estado de torpor que alguém tocou levemente em seu braço, conduzindo-a para mais uma apresentação. Ela nem registrava nomes. Apenas balançava a cabeça, oferecia a mão, respirava.
— Senhora Lefevre... este é Matteo Eisenberg.
A mente dela registrou o nome em retardo.
E então, os olhos se encontraram.
Pretos. Intensos. Profundos. Como a noite mais cerrada da Suíça.
Havia algo naquele olhar que a fez despertar. Um estremecimento sutil, como se seu corpo, exausto, reconhecesse um campo de força diferente.
Ele estendeu a mão.
Ela correspondeu.
E então…
Sentiu.
O calor. A firmeza. A tensão.
E o fato de que ele demorou um segundo a mais do que o normal para soltá-la.
O coração de Isabelle bateu mais forte. Não de paixão, nem de desejo. De choque.
“O que foi isso?”
“Quem é ele?”
Ela não sabia.
Mas o corpo sabia.
E então, corou. Sutilmente. Involuntariamente. Como uma menina. Como se o sangue denunciasse algo que a mente ainda não entendia.
Tentou manter o olhar firme. Mas Matteo não desviava.
— Meus sentimentos, senhora Lefevre. Seu pai me falou de você. E... eu nunca imaginei que a dor pudesse ter um rosto tão sereno.
Ela apenas assentiu. Não tinha palavras.
“Quem é esse homem que me olha como se enxergasse além da dor?”
E então, como se o feitiço precisasse ser quebrado, Claude apareceu.
O toque da mão dele em sua cintura fez o corpo de Isabelle enrijecer. A cena se dissolveu. A realidade voltou. O papel social retomado.
Seu marido cumprimentou Matteo. Falou como sempre falava: com superioridade, com falsa civilidade, com aquele jeito de dono.
Isabelle apenas sorriu e recuou um passo.
Mas por dentro, a pergunta insistia:
“O que aconteceu comigo... naquele aperto de mão?”
Ela não sabia.
Mas por um instante, muito breve, deixou de sentir dor para sentir algo. Qualquer coisa.
E, sem entender, sentiu culpa.
Mesmo sendo ela quem mais merecia sentir algo vivo. Algo bom. Mesmo que só por um segundo.