Capítulo 4 – As Cinzas

A manhã seguinte amanheceu cinza. Literalmente.

A neblina cobria os jardins da mansão Marchand-Lefevre como um véu de luto natural. Os pássaros não cantavam. O vento parecia se mover em respeito ao que havia acontecido.

Isabelle despertou sem saber que havia adormecido.

Estava deitada no sofá da sala de estar, coberta por um xale que Claire, a governanta, colocara sobre seus ombros na madrugada. Sophie havia passado a noite na casa, sentada ao seu lado, segurando sua mão em silêncio.

Agora, ambas estavam de pé, e Claire falava com voz serena:

— Precisamos providenciar o funeral, senhora Lefevre. Não será fácil, mas não se preocupe. Eu já contatei o serviço funerário. Apenas preciso da sua autorização para os detalhes.

Isabelle assentiu com um leve movimento de cabeça. Seus olhos estavam fundos, sem brilho. O rosto pálido, mas limpo. Havia dignidade em sua dor. Um tipo de luto silencioso que só se vê em almas despedaçadas.

— O mais discreto possível, mas com o respeito que eles merecem — disse ela, por fim.

Claire sorriu com empatia. Aquela menina... ainda chamava os pais de meus pais, como se fossem vivos.

— Cuidaremos de tudo.

...

O Noticiário

Na televisão do corredor de serviço, uma chamada interrompeu o noticiário econômico:

“Tragédia nos Alpes: casal Marchand morre em queda de jatinho particular.”

A imagem congelada mostrava o elegante François Marchand em uma coletiva de imprensa meses antes, ao lado da esposa, Geneviève, sorridente em um evento beneficente.

A voz da repórter era grave:

“Um dos casais mais influentes da elite suíça perdeu a vida ontem à tarde em um acidente aéreo enquanto voavam de Lausanne a Viena. François Marchand, CEO da Marchand Pharma, e sua esposa, a renomada socialite e filantropa Geneviève Marchand, deixaram uma única herdeira: Isabelle Marchand-Lefevre, 26 anos, casada com o empresário Claude Lefevre.”

“Isabelle é conhecida pela discrição e elegância. Educada em um internato austríaco, domina cinco idiomas e mantém participação simbólica no conselho de algumas fundações mantidas pela família. Nos últimos anos, sua aparição pública tem sido rara. O funeral está previsto para os próximos dias.”

A tela então mostrou uma imagem de Isabelle — jovem, linda, vestida de branco, tocando piano em um recital beneficente há quatro anos. Um close em seus olhos azuis, seu semblante de porcelana.

...

Em Lucerna – O Escritório de Matteo Eisenberg:

Na cobertura de vidro e concreto do Grupo Eisenberg, Matteo desligou o viva-voz da reunião com investidores assim que viu a imagem de François Marchand aparecer na televisão. O som estava baixo, mas a legenda era clara.

Ele pegou o controle e aumentou o volume. A secretária tentou avisá-lo de outro compromisso, mas ele ergueu a mão, pedindo silêncio.

“...François Marchand, CEO da Marchand Pharma...”

Matteo franziu o cenho. Conhecia François.

Tinham se encontrado duas vezes em eventos empresariais. Uma delas, inclusive, quase gerara uma aliança comercial entre os dois grupos. Mas François fora reticente. Calculista demais. Ainda assim, Matteo o respeitava.

Assistiu à notícia com atenção, cruzando os braços sobre o peito largo.

E então... a repórter disse:

“...deixam uma única filha, Isabelle Marchand-Lefevre...”

A imagem dela apareceu na tela.

Matteo sentiu uma coisa estranha. Não era atração. Não era pena. Era... compaixão silenciosa, misturada a um incômodo sutil. Algo dentro dele se apertou.

Aquela mulher... tão jovem, tão frágil na imagem... agora sozinha no mundo.

Ele tentou ignorar. Sentimentos não eram parte do seu código.

Mas não conseguiu desviar os olhos da tela. Não conseguia esquecer o nome.

Isabelle.

A herdeira que nunca assumira nada. A esposa de um homem que Matteo já ouvira sussurros negativos. Um jogador. Um aproveitador.

— Ela está sozinha agora... — murmurou, mais para si mesmo do que para os outros.

Daniel Gruber, seu diretor financeiro, entrou na sala, interrompendo a quietude.

— Matteo, você viu? O acidente dos Marchand...

— Estou vendo — respondeu, sério.

— A empresa deles deve ser dilacerada. Eu mesmo tentei contato com o jurídico deles semanas atrás, sem retorno. Provavelmente em breve estarão afundados.

Matteo assentiu. Não era hora de pensar em aquisição.

Mas era hora de tomar nota.

— Avise o jurídico. E o setor de relações institucionais. Pode haver impacto no mercado farmacêutico. Mas... com cautela.

Daniel arqueou uma sobrancelha.

— Cautela?

— A filha deles está sozinha agora. Ainda casada, mas, segundo os rumores, presa em um casamento que parece mais uma condenação do que uma união.

Daniel apenas assentiu, um pouco surpreso. Matteo raramente misturava negócios e sensibilidade.

Mas naquele dia, algo mudava.

Matteo Eisenberg não sabia dizer o que era.

Talvez fosse apenas um instinto. Talvez fosse uma memória reprimida do tempo em que sua mãe dizia:

"As pessoas mais silenciosas são as que mais gritam por dentro."

Ele desligou a TV.

E pela primeira vez em muitos anos... ficou pensativo.

...

De volta à Mansão...

Isabelle se manteve ereta, organizando os documentos, assinando autorizações, confirmando listas de convidados, horários com a funerária.

Claire estava sempre por perto.

Sophie, ao lado.

Nenhuma lágrima caía naquele instante. Estavam todas guardadas, como a porcelana do salão de chá da sua mãe.

Mas dentro dela, uma voz gritava:

“Eu estou sozinha.”

E o mundo, lá fora, começava a se mover. E a observá-la.

Sem saber que um par de olhos — os de Matteo Eisenberg — a tinham notado.

...

O celular de Claude vibrou sobre a mesinha do hotel pela sexta vez naquela manhã.

Caroline esticou o braço, ainda deitada nua nos lençóis amassados, e puxou o aparelho com desdém.

— Ela não desiste mesmo — murmurou, lendo o nome na tela. — Isabelle. De novo.

Claude resmungou algo e virou-se para o outro lado da cama, cobrindo a cabeça com o travesseiro.

— Mulher carente. Nunca entendeu que casamento não é contrato de afeto. É de posse.

Caroline desbloqueou o celular sem cerimônia. As mensagens estavam visíveis. Seus olhos se arregalaram ao ler a última:

“Meus pais morreram. Se souber onde está Claude, diga que preciso dele.”

Ela se sentou rapidamente, puxando o lençol para cobrir os seios.

— Claude... ela não tá ligando à toa.

— Hã?

— Os pais dela. Morreram. Estão mortos. Tá aqui — disse, mostrando a tela. — Ela disse que foi um acidente.

Claude se ergueu num salto, o olhar de ressaca dando lugar a algo mais sóbrio — mas não emocionado.

— Como assim?

— Acidente de avião. A imprensa deve estar noticiando.

No mesmo instante, Caroline pegou o controle e ligou a TV. O canal de notícias suíço já exibia imagens do casal Marchand e, logo em seguida, a manchete:

“Tragédia nos Alpes: François e Geneviève Marchand morrem em acidente aéreo.”

Ambos ficaram em silêncio por alguns segundos, absorvendo a notícia.

Mas não havia dor naqueles olhos. Havia cálculo.

Claude se levantou, caminhou até a janela, passando a mão no queixo.

— Ela... é a única herdeira.

Caroline, ainda com o controle na mão, o encarava com expressão intrigada.

— Você tá pensando no quê?

Claude virou-se devagar, os olhos acesos como de um animal farejando oportunidade.

— Pensa comigo: toda a fortuna da família agora está nas mãos da Isa. E com a cabeça fraca, abalada... ela vai se apoiar em quem?

— Em você?

— Em mim — respondeu com convicção. — Eu sou o único “pilar” que ela tem agora. O marido enlutado, o homem que vai ajudá-la a superar tudo isso... enquanto assina o que eu mandar.

Caroline arqueou uma sobrancelha.

— Você é mesmo um canalha.

Ele sorriu, satisfeito com o título.

— Sou um homem de visão.

— E eu? — ela cruzou os braços. — Vai me esconder debaixo do tapete?

— Você sempre soube o papel que desempenha, querida. Não me peça para colocar sentimento onde só existe estratégia.

Caroline revirou os olhos e acendeu um cigarro, ainda nua, jogando a fumaça em direção à janela aberta.

— Só quero a minha parte, Claude.

— E você vai tê-la. Quando eu conseguir o que é meu... o que agora está nas mãos daquela esposa em luto... emocionalmente sozinha, mas legalmente ainda minha...

Ele pegou a camisa, começou a se vestir às pressas.

— Eu preciso voltar pra casa. Agora.

Olhou no espelho e ajeitou o cabelo, como se se preparasse para um velório — ou para a farsa do século.

— Hora de ser o marido exemplar.

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