Rastros na Areia

A folha de papel continuava no chão como um segredo maldito que se recusava a desaparecer.

Isadora encarava aquelas palavras como se fossem um eco de um tempo que lutara tanto para esquecer. O nome “Gabriel”, escrito com precisão e calma, a atingia com força crua, como se cada letra rasgasse um pedaço da segurança que ela vinha construindo dia após dia.

Não havia sinal de quem a deixara ali. Nenhuma pegada, nenhum som. Apenas aquele aviso sutil: ele sabia onde ela estava.

Tentou inspirar fundo, mas o ar parecia mais denso. Pegou o envelope com dedos trêmulos e o colocou debaixo de uma pilha de livros no balcão, como se o peso da ficção pudesse proteger a realidade de entrar em colapso.

Tomou o chá quase frio da manhã como se fosse remédio, engolindo em silêncio os primeiros sinais do medo.

Ela conhecia Gabriel. Sabia que ele nunca gritava, nunca batia portas. Suas ameaças vinham como palavras delicadas, sorrisos cortantes, e agora... bilhetes deixados ao amanhecer.

Cecília apareceu por volta das dez, radiante como sempre, com flores frescas e um vestido verde-claro que destoava da sombra que pairava sobre a livraria.

— Bom dia, minha anêmona do Atlântico! — cantarolou. — Dormiu bem?

Isadora sorriu com esforço.

— Já dormi melhor.

Cecília pousou as flores no balcão, inclinando a cabeça como um gato desconfiado.

— Tá com cara de quem viu um fantasma. De novo.

O silêncio de Isadora foi resposta suficiente.

— Ih. Eu sabia. Conta. Agora.

Ela tirou o envelope debaixo dos livros e o entregou com relutância. Cecília leu a frase com o cenho franzido, depois olhou para a amiga com olhos sérios — um raro momento em que a leveza dava lugar à urgência.

— Foi ele?

Isadora apenas assentiu.

— Certeza?

— Ele costumava escrever bilhetes. Pequenos. Com palavras ambíguas. Sempre deixava sobre a mesa, na bolsa, na porta do quarto. Isso... isso é dele.

— E agora?

— Agora eu tento fingir que não estou em pânico — disse, tentando sorrir sem sucesso.

Cecília se aproximou, segurando os ombros dela com firmeza.

— Você não está sozinha. Se ele te seguiu até aqui, se ousar aparecer de verdade... ele vai ter que passar por mim. E por uma tesoura de poda.

Isadora riu, brevemente, e aquilo bastou para aliviar, ainda que por segundos, o nó que apertava seu peito.

O resto do dia passou em marcha lenta. Isadora tentava manter a rotina — atendia clientes, organizava livros, respondia e-mails — mas seus pensamentos flutuavam, sempre voltando para a porta. A qualquer momento, ela esperava que ele entrasse. Que aquele sussurro escrito se tornasse presença.

Mas ele não apareceu.

À tarde, enquanto reorganizava uma das estantes do fundo, ouviu o sino da porta tocar. Seu coração saltou, mas não era Gabriel.

Era Lorenzo.

Carregava dois cafés nas mãos e um livro de capa azul no braço.

— Você parece cansada — disse ele, entregando o copo.

— E você parece observar bem — respondeu ela, aceitando a bebida.

Ele se sentou na poltrona junto à vitrine, e por um tempo, ficaram apenas ali, em silêncio. O som da rua, o cheiro do café, o farfalhar das páginas folheadas por clientes ao fundo.

Lorenzo notava os detalhes — o modo como ela franzia a testa, como os ombros estavam mais tensos que o habitual, como as mãos seguravam a xícara com força demais.

— Quer falar sobre isso? — perguntou, sem olhar diretamente para ela.

Ela hesitou, depois balançou a cabeça.

— Ainda não.

— Tudo bem.

E voltou a folhear o livro, como se sua presença fosse apenas isso: um espaço aberto, sem exigências.

Foi ali, naquele gesto, que Isadora sentiu algo se aquecer por dentro. Um tipo de cuidado silencioso, sem pressão, sem perguntas. Como uma âncora lançada no fundo do mar só para garantir que ela não fosse levada pelas ondas.

Ela aproximou-se, sentando-se na poltrona ao lado. Deixou que seus pés tocassem levemente os dele, quase sem querer — e não recuou.

— Você lembra daquele dia no farol? — perguntou, baixinho.

— Qual deles?

— O último antes de você ir embora. Elisa tirou uma foto nossa. A que você me deu depois.

Lorenzo assentiu, o sorriso surgindo aos poucos.

— Eu lembro do seu cabelo bagunçado pelo vento. E de você tentando disfarçar que estava chorando.

Ela corou, rindo brevemente.

— Eu disse que era o sal do mar.

— Eu fingi que acreditei.

O silêncio voltou, mas agora era confortável. A livraria parecia abraçá-los, envolta em páginas antigas e lembranças redescobertas.

Quando Lorenzo foi embora, o céu já começava a escurecer. Isadora ficou parada na porta, observando-o se afastar rua abaixo, com o casaco balançando ao vento.

Ela não sabia exatamente o que ele era agora. Uma sombra do passado, um amigo, uma promessa silenciosa. Mas sabia que sua presença ali tornava tudo um pouco mais suportável.

Entrou, trancou a porta e foi até o balcão.

O envelope ainda estava lá.

Dessa vez, ela não o escondeu. Pegou uma caixa de madeira e guardou dentro. Trancou.

Mas sabia que não era a madeira que a protegeria.

Era o que vinha depois.

A noite caiu devagar, como um cobertor de névoa sobre as ruas de Arraial da Costa.

Isadora fechou a livraria mais cedo do que o habitual. Mesmo com a luz suave dos abajures e o cheiro familiar dos livros, havia algo em seu corpo que pedia repouso — ou fuga. Ela fingiu não saber qual dos dois.

A carta de Gabriel parecia um eco constante, mesmo trancada na caixa de madeira. Era como se suas palavras ainda vibrassem no ar, penduradas entre as paredes da livraria e o teto de seu peito.

Deitou-se cedo, mas não dormiu.

Passou longos minutos olhando para o teto, ouvindo os sons da rua, tentando lembrar da última vez em que havia se sentido segura de verdade.

Na manhã seguinte, Isadora decidiu abrir a livraria apenas no fim do dia. Precisava respirar. Caminhou até a praia com um livro em mãos e uma garrafa térmica com chá. O vento estava mais frio do que esperava, e o céu estava nublado — o tipo de dia em que o mar parecia conversar com os que sabiam ouvir.

Sentou-se na areia com os pés enterrados, deixando que a brisa bagunçasse seus cabelos. Abriu o livro, mas não leu. Apenas folheou. A cabeça estava longe.

Perto dali, uma figura familiar se aproximava.

— Você sempre foi uma criatura do mar — disse Lorenzo, ao se sentar ao lado dela, sem avisar.

— E você sempre soube me encontrar — respondeu ela, com um meio sorriso.

Ele não disse nada por um tempo. Apenas acompanhou o ritmo das ondas com os olhos. Depois, tirou do bolso um pequeno pacote: uma pulseira de contas brancas e azuis, desgastadas pelo tempo.

— Achei isso nas minhas coisas ontem à noite. Acha que era sua?

Isadora ficou sem ar por um instante.

Ela se lembrava daquela pulseira. Tinha feito para ele, na adolescência, em uma tarde preguiçosa na varanda da casa de Elisa. Ele dissera que nunca tiraria. Mas aparentemente, tirou. Ou perdeu. Ou apenas guardou.

— Eu pensei que tivesse se perdido — murmurou ela, pegando o objeto com cuidado.

— Eu também. Mas estava lá, no fundo de uma caixa, junto com uma carta sua que nunca respondi.

Ela o olhou, surpresa.

— Você guardou?

— Guardei. Mas nunca tive coragem de ler de novo.

Isadora inspirou fundo.

— Era uma carta boba. Eu dizia que... queria que você ficasse. Mas eu sabia que não ia acontecer.

— Eu quase fiquei — disse ele, com a voz baixa. — Mas achei que você merecia alguém menos confuso do que eu era na época.

— E você achava que eu estava inteira?

Lorenzo a encarou. O silêncio que se seguiu foi como uma maré voltando. Ele entendeu.

— Você parecia forte.

— E era. Mas isso não me impedia de sentir.

Eles ficaram assim por um tempo. A pulseira entre eles. O passado entre as mãos. As palavras ditas tarde demais — mas ainda em tempo.

Naquela tarde, Lorenzo passou na livraria com um pacote de pães de mel e dois livros de poesias que tinha comprado em um sebo local. Isadora o deixou entrar pela porta dos fundos, como se aquele gesto dissesse: Você pode ver o que os outros não veem.

Passaram algumas horas juntos. Poucas palavras. Muita presença.

Ele a ajudou a reorganizar uma seção esquecida de clássicos, dividiu um chá quente, ouviu ela reclamar das etiquetas mal coladas de um fornecedor, e sorriu enquanto ela tentava, pela terceira vez, limpar uma mancha invisível do balcão.

Havia ali uma intimidade que não precisava de nome.

Por volta das seis, ele se despediu com um gesto simples — um toque leve nas costas dela ao passar. Isadora se arrepiou, mas não se afastou.

— Até amanhã? — perguntou ele.

— Amanhã — confirmou ela, com um sorriso quase imperceptível.

Mais tarde, já noite feita, Isadora saiu da cozinha com uma caneca de chá e se aproximou da janela da sala. Por hábito, olhou para a rua silenciosa.

Mas algo estava diferente.

Um homem parado do outro lado da rua. Muito imóvel. De casaco escuro, braços cruzados, olhando fixamente para a fachada da livraria. O rosto estava parcialmente coberto pela sombra do poste.

Ela congelou.

Não conseguia ver com clareza. Mas algo naquele porte. Na postura. No jeito de ficar parado, como quem espera sem pressa…

O homem virou-se devagar e começou a andar pela calçada, afastando-se até sumir na esquina.

Isadora ficou ali, imóvel, com os dedos apertando a caneca com tanta força que o líquido transbordou.

Na manhã seguinte, ao abrir a livraria, ela encontra um marcador de página esquecido sobre o balcão.

Não era dela.

Nem de nenhum cliente que lembrasse.

Era de couro escuro, com uma única palavra gravada a fogo:

“Pertencente.”

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