Mundo ficciónIniciar sesiónSofisticada, porém marcada por cicatrizes do passado, Isadora, 29 anos, vive uma vida solitária em uma cidade litorânea, tentando escapar de um trauma amoroso. Quando Lorenzo, um arquiteto introvertido e emocionalmente fechado, retorna à cidade após anos, seus caminhos se cruzam de forma inesperada. Ambos carregam feridas que não cicatrizaram. Mas e se a cura estivesse exatamente no confronto entre suas dores?
Leer másO som do mar ecoava ao fundo, como um velho sussurro familiar. Isadora organizava os livros na vitrine da Livros do Mar, seus dedos deslizando entre lombadas gastas com um carinho que só o tempo ensina. A cidade de Arraial da Costa despertava sob uma névoa preguiçosa, e o aroma de café e maresia se misturava no ar.
Ela havia se mudado há poucos meses. O pequeno sobrado onde morava rangia como se tivesse histórias para contar, e talvez tivesse. Era ali que recomeçava. Longe do passado. Longe de Gabriel.
As manhãs na livraria tornaram-se rituais silenciosos. Colocar música instrumental suave, varrer o chão de madeira escura, regar as plantas da janela. Pequenas rotinas que a faziam respirar.
Foi enquanto ajeitava um exemplar antigo de "O Morro dos Ventos Uivantes" que sentiu. A porta se abriu. Um passo firme. Familiar. O sino tilintou, mas o som ficou em segundo plano — porque ele estava ali. Lorenzo.
Mais alto do que lembrava. Ombros largos sob a camisa social azul clara. Cabelos escuros desalinhados como quem não se importa, ou como quem não dorme bem. Os olhos? Exatamente como antes: um misto de tempestade contida e silêncio profundo.
Ela não disse nada.
Ele também não.
Por segundos que pareceram horas, o tempo parou entre os dois.
Isadora quebrou o encanto primeiro. Virou-se e caminhou até o balcão, coração acelerado. Lorenzo permaneceu ali, imóvel, como se o próprio chão o prendesse.
— Desculpa, eu... achei que ainda estava fechada. — A voz dele saiu baixa, um pouco rouca. Havia algo quebrado nela.
Ela assentiu. — Acabei de abrir.
Os dois ficaram ali, cercados por livros e lembranças não ditas.
Isadora desviou o olhar primeiro, concentrando-se em ajustar a pilha de marcadores de página no balcão — mesmo que nenhum estivesse realmente fora do lugar. O som das ondas do mar ainda invadia a livraria pelas janelas entreabertas, mas agora parecia mais distante, abafado pelo ruído da memória.
Lorenzo deu um passo hesitante para dentro, como se o ambiente fosse sagrado demais para sua presença. Ele percorreu o olhar pelos estofados antigos, pelas estantes repletas de títulos empoeirados e pelas samambaias penduradas que balançavam suavemente com a brisa salgada.
— Eu... estava passando — disse ele, finalmente. — Não sabia que essa livraria era sua.
Ela ergueu os olhos devagar, como se cada segundo desse gesto precisasse de esforço. Havia algo nos olhos dele que a incomodava: não era só saudade, era culpa também.
— Não era — respondeu, seca. — Ainda estou me acostumando com isso.
Lorenzo assentiu, como se entendesse. Mas não entendia. Ninguém entendia.
Silêncio.
Ela sabia que, em outros tempos, já teria despejado sobre ele uma enxurrada de perguntas: “Por que você foi embora?”, “O que aconteceu com você?”, “Por que não me escreveu nem uma vez?” Mas agora... agora ela não era mais a mesma. Estava cansada de colecionar porquês.
— A cidade mudou — ele comentou, percorrendo os olhos pela vitrine. — Ou talvez eu tenha mudado. Parece tudo menor agora.
Isadora não respondeu. Sabia que ele não falava da cidade.
Ele andou até a seção de romances e puxou um exemplar qualquer, mas não abriu. Apenas segurou o livro nas mãos como se ele tivesse algum tipo de resposta. Como se tocá-lo fosse o suficiente para ancorar-se ali.
— Você sempre gostou dessa história — ele disse, sem mostrar a capa. — “A Casa das Orquídeas”, não é?
Ela ficou imóvel. Lembrava daquele livro. Lembrava da tarde em que ele trouxe para ela, embrulhado em papel marrom e fita vermelha. Um presente sem data, sem motivo. Apenas porque ele “achou que ela ia gostar”.
Ela forçou um sorriso fraco.
— Você tem boa memória.
Lorenzo riu, sem humor.
— Só com algumas coisas.
Outro silêncio, esse mais pesado.
Isadora então deu um passo atrás, como se precisasse de ar — ou de distância. Pegou uma xícara da prateleira atrás do balcão e serviu café recém-passado da garrafa térmica.
— Quer? — perguntou, segurando a xícara como um escudo.
Ele hesitou, mas aceitou.
Quando ela lhe entregou a bebida, por um instante seus dedos se tocaram. Foi breve, quase acidental — mas não foi. Isadora sentiu a pele arrepiar.
Ela virou-se rapidamente, fingindo procurar algo no fundo da loja. Seus passos estavam mais rápidos do que o necessário, e suas mãos tremiam levemente. Não por medo. Por memória.
A livraria parecia menor agora. Ou talvez fosse o ar que faltava.
Lorenzo se sentou no sofá perto da janela, ainda segurando o livro. O sol da manhã filtrava-se pelas cortinas de renda, desenhando sombras em seu rosto.
— Eu voltei pra ficar, Isa.
Foi um sussurro, mas chegou aos ouvidos dela como um trovão.
Ela fechou os olhos.
Voltar era fácil. Ficar, nem tanto.
O sino da porta ainda balançava levemente, mesmo minutos depois de Lorenzo tê-la cruzado. Isadora fingia concentrar-se nos papéis atrás do balcão, mas seus olhos voltavam para ele com frequência — furtivos, atentos, desconfiados. Como se cada movimento dele pudesse desenterrar algo que ela havia enterrado com tanto cuidado.
Lorenzo não se mexia. Sentado ali, a xícara nas mãos, o livro no colo, o olhar perdido na janela. Era como se a própria cidade o observasse de volta, tentando lembrar-se dele.
Ela o estudou à distância. A forma como ele mantinha as costas eretas, os ombros tensos, o maxilar contraído. Ele parecia fora de lugar naquela livraria suave e acolhedora, como um fragmento de outro tempo — mais frio, mais duro. Mas havia algo nos olhos dele que a desarmava, mesmo que ela tentasse resistir. Algo que gritava por ajuda, embora os lábios não dissessem nada.
— Faz tempo — disse ela, por fim, apenas para romper o peso do silêncio.
Lorenzo ergueu o olhar, surpreso por ela ter falado.
— Sete anos — respondeu. — Ou quase isso.
Sete anos. Tempo suficiente para mudar de cidade, de nome, de pele. Mas não para esquecer. Não completamente.
— Por que voltou? — perguntou ela, ainda de costas.
Houve um intervalo longo antes da resposta. Ela quase pensou que ele não falaria.
— Meu pai está doente. E... acho que já fugi o suficiente.
A frase pairou no ar, densa e honesta. Pela primeira vez, Isadora sentiu que talvez ele estivesse ali por algo mais do que nostalgia. Talvez estivesse quebrado também.
Ela respirou fundo, tentando manter-se firme. O passado era um labirinto, e ela havia decorado o caminho para longe dele. Não queria voltar. Mas Lorenzo era, em si, um atalho perigoso.
— A livraria é bonita — disse ele, após um tempo. — Combina com você.
Ela virou-se, surpresa pela gentileza. Seus olhos se encontraram — e, por um breve instante, o mundo pareceu conter apenas aquele olhar. Nenhuma palavra a mais, nenhuma desculpa. Apenas a lembrança crua do que eram... e do que talvez pudessem ter sido.
Isadora desviou o olhar e caminhou até uma das prateleiras. Puxou um livro e folheou suas páginas sem realmente ver. Estava apenas tentando desacelerar o coração.
— Não costumo receber visitas de fantasmas — disse ela, com um sorriso que era mais armadura do que simpatia.
Lorenzo soltou um suspiro curto. Levantou-se do sofá e caminhou até ela. Estava a apenas um metro de distância, e mesmo assim, ela sentia como se a presença dele ocupasse toda a sala.
Ele estendeu o livro que ainda segurava.
— Então talvez eu deva comprar algo... e ir embora.
Ela olhou para o exemplar. Era um romance antigo, pouco vendido. Um daqueles títulos que só alguém com lembranças específicas escolheria. Ela pegou o livro, os dedos roçando os dele novamente. Mais um arrepio.
— Vinte reais — disse.
Ele entregou uma nota dobrada, mas ela não estendeu a mão. Apenas apontou para o caixa.
— Pode deixar sobre o balcão.
Ele obedeceu. E então, em silêncio, caminhou até a porta. O sino soou novamente, discreto, como se também hesitasse.
Antes de sair, Lorenzo virou-se por um momento.
— Não sou mais o mesmo, Isa.
Ela mordeu o lábio, apertando o livro contra o peito.
— Espero que não.
E então ele se foi.
O som dos passos na calçada desapareceu, mas dentro dela, algo havia se acendido — como uma brasa esquecida que, de repente, voltava a respirar.
Isadora sentou-se no sofá onde ele estivera segundos antes. O livro ainda aquecia em suas mãos, como se guardasse o toque dele. E ali, naquele instante solitário, ela permitiu-se algo que há muito tempo não fazia.
Ela sentiu.
E foi o bastante para começar a doer de novo.
Horas depois, já com a loja fechada, Isadora folheou o livro que Lorenzo havia deixado. Não esperava nada. Mas ali, na página 13, encontrou uma anotação feita à caneta, com sua própria caligrafia de anos atrás:
“Para quando as palavras falharem, e tudo o que sobrar for o silêncio. – I.”
Ela encostou-se à parede, apertando o livro contra o peito.
Algumas dores não desaparecem. Elas apenas aprendem a esperar.
A folha de papel continuava no chão como um segredo maldito que se recusava a desaparecer.Isadora encarava aquelas palavras como se fossem um eco de um tempo que lutara tanto para esquecer. O nome “Gabriel”, escrito com precisão e calma, a atingia com força crua, como se cada letra rasgasse um pedaço da segurança que ela vinha construindo dia após dia.Não havia sinal de quem a deixara ali. Nenhuma pegada, nenhum som. Apenas aquele aviso sutil: ele sabia onde ela estava.Tentou inspirar fundo, mas o ar parecia mais denso. Pegou o envelope com dedos trêmulos e o colocou debaixo de uma pilha de livros no balcão, como se o peso da ficção pudesse proteger a realidade de entrar em colapso.Tomou o chá quase frio da manh
O som das ondas quebrando nas pedras abaixo do farol era o único ruído constante naquela noite úmida.Isadora ainda estava ao lado de Lorenzo, sentada com os joelhos abraçados contra o peito, olhando o mar como se ele pudesse oferecer respostas. O vento do alto do penhasco era mais frio ali, trazendo com ele memórias que insistiam em doer.Ela notou a mudança sutil no rosto dele assim que a notificação do celular apareceu. Era quase imperceptível — um leve tensionar da mandíbula, o olhar que se desviava, o corpo que enrijeceu. Mas ela conhecia aquele tipo de silêncio.— Lorenzo... quem é "G"?Ele demorou a responder. A tela do celular continuava acesa, revelando apenas o nome da pessoa e o trecho da mensagem.“Precisamos
A noite caiu como um véu denso sobre Arraial da Costa. A cidade parecia mais silenciosa do que o normal, como se até as ondas tivessem decidido respeitar os pensamentos de Isadora.Ela sentou-se na poltrona da sala, o envelope de Lorenzo sobre a mesinha, ao lado de uma caneca de chá já esquecida. A foto que ele deixara havia sido colocada em um pequeno porta-retrato improvisado, ao lado do livro que ele não levara.Aquela memória — os três juntos no farol — ainda latejava. Elisa, com seus cabelos cacheados voando ao vento. Lorenzo, com um sorriso que raramente mostrava agora. Ela mesma, com olhos que ainda não conheciam o gosto da decepção.Quando o celular vibrou sobre a mesa, o som abrupto a fez estremecer. Era tarde. O número era desconhecido.Atendeu hesitante.
O céu estava cinzento naquela manhã, como se o próprio tempo hesitasse em recomeçar.Lorenzo caminhava devagar pela orla, os sapatos sujos de areia molhada e as mãos enterradas nos bolsos da calça. O vento do mar soprava com umidade e sal, bagunçando ainda mais seus cabelos já desordenados. Havia algo de cruel em voltar — como pisar em ruínas que você mesmo ajudou a erguer e depois abandonou.Ele passou em frente ao antigo mercado municipal, que agora funcionava como um café-restaurante com fachada azul claro. Reconhecia cada esquina, cada farol enferrujado, cada banco de praça. Mas tudo parecia menor — ou talvez fosse ele que tivesse crescido torto demais.A conversa com Isadora o acompanhava como um eco. Ela estava... diferente. Mais contida, mais forte — e ao mesmo tempo, mais frágil nas bordas. Como se o silênci
O som do mar ecoava ao fundo, como um velho sussurro familiar. Isadora organizava os livros na vitrine da Livros do Mar, seus dedos deslizando entre lombadas gastas com um carinho que só o tempo ensina. A cidade de Arraial da Costa despertava sob uma névoa preguiçosa, e o aroma de café e maresia se misturava no ar.Ela havia se mudado há poucos meses. O pequeno sobrado onde morava rangia como se tivesse histórias para contar, e talvez tivesse. Era ali que recomeçava. Longe do passado. Longe de Gabriel.As manhãs na livraria tornaram-se rituais silenciosos. Colocar música instrumental suave, varrer o chão de madeira escura, regar as plantas da janela. Pequenas rotinas que a faziam respirar.Foi enquanto aje





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