Mundo de ficçãoIniciar sessãoO céu estava cinzento naquela manhã, como se o próprio tempo hesitasse em recomeçar.
Lorenzo caminhava devagar pela orla, os sapatos sujos de areia molhada e as mãos enterradas nos bolsos da calça. O vento do mar soprava com umidade e sal, bagunçando ainda mais seus cabelos já desordenados. Havia algo de cruel em voltar — como pisar em ruínas que você mesmo ajudou a erguer e depois abandonou.
Ele passou em frente ao antigo mercado municipal, que agora funcionava como um café-restaurante com fachada azul claro. Reconhecia cada esquina, cada farol enferrujado, cada banco de praça. Mas tudo parecia menor — ou talvez fosse ele que tivesse crescido torto demais.
A conversa com Isadora o acompanhava como um eco. Ela estava... diferente. Mais contida, mais forte — e ao mesmo tempo, mais frágil nas bordas. Como se o silêncio tivesse se tornado parte dela. Ele se perguntava quanto daquilo era culpa dele.
Caminhou até a casa dos pais, onde agora morava temporariamente. A fachada estava descascada, a varanda mais silenciosa sem a voz da irmã caçula contando histórias e rindo alto. Lorenzo passou os dedos pela pilastra de madeira como se tocasse uma cicatriz. Havia perdido muito — mas o pior era perceber que nem sabia quando, exatamente, tudo começou a ruir.
Dentro de casa, encontrou a mãe preparando chá e o pai dormindo na poltrona. A doença o tornava mais ausente a cada dia. Era Alzheimer, em estágio intermediário. Havia dias em que ele o confundia com o avô. Outros em que chorava porque achava que Lorenzo ainda era criança.
— Dormiu bem? — perguntou a mãe, sem erguer os olhos da chaleira.
— Mal — respondeu, sincero.
Ela suspirou. Ambos sabiam que aquela casa também tinha seus fantasmas.
—
Enquanto isso, do outro lado da cidade, Isadora estava na varanda da livraria, um livro fechado no colo e o olhar distante. A anotação na página 13 ainda reverberava em sua mente. Como aquela cópia havia voltado para ela? Por que Lorenzo a escolhera, entre tantos outros?
Não era só o livro. Era o gesto. A forma como ele falava pouco, mas os olhos diziam demais.
Ela levantou-se, precisando de movimento. Reorganizou estantes, passou pano nos balcões, trocou os vasos de lugar — qualquer coisa que a mantivesse ocupada. Mas a memória dele continuava ali, encostada nas paredes, como a brisa que nunca parava de entrar.
No início da tarde, Cecília apareceu na porta com um buquê de girassóis e um sorriso matreiro.
— Trouxe luz. E perguntas.
Isadora arqueou uma sobrancelha.
— E eu trouxe exaustão.
Cecília colocou as flores no balcão e se sentou.
— Não me venha com “estou bem”. Eu te conheço desde os tempos das pulseirinhas de miçanga. Fala logo.
Isadora hesitou. Contar sobre Lorenzo era como abrir uma gaveta cheia de cartas antigas — e algumas ainda cortavam.
— Ele voltou — disse, por fim. — Lorenzo.
Cecília não precisou perguntar "quem". Seu silêncio foi eloquente. Apenas assentiu, pegando uma das flores e girando-a entre os dedos.
— E?
— E nada. Apareceu, comprou um livro, disse que voltou pra ficar.
— Pra ficar onde? — perguntou a amiga, desconfiada.
— Com os pais, pelo que entendi. O pai dele está doente.
Cecília franziu o cenho.
— Você falou com ele?
— Não muito. Mas... ele não mudou tanto assim. Ou talvez tenha mudado demais. Não sei.
Houve uma pausa. Cecília a observava com um olhar entre avaliação e carinho.
— Vai querer conversar sobre isso ou fingir que ele nunca existiu?
Isadora fechou os olhos por um instante.
— Eu ainda estou decidindo.
—
À noite, Lorenzo caminhou até a livraria. Não entrou. Apenas parou do outro lado da rua e observou as luzes suaves que vinham de dentro. Viu Isadora recolhendo os últimos livros, acendendo o abajur da vitrine. Os gestos dela tinham algo de ritualístico. Quase sagrado.
Ele se perguntou se tinha direito de estar ali. Se não estava apenas perturbando algo que finalmente estava em paz.
Mas ele também sabia — e isso doía — que a paz dela era construída sobre uma dor que, em parte, ele ajudou a cavar.
—
No dia seguinte, o sino da livraria tocou cedo.
Isadora, ainda com os cabelos presos em um coque desarrumado e vestindo uma camisa de linho largo, esperava um entregador. Mas era Lorenzo.
— Bom dia — disse ele, tentando sorrir.
Ela não respondeu de imediato. Só se virou devagar, como quem pensa duas vezes antes de abrir a porta para uma lembrança.
— Você esqueceu de levar o livro — disse ela, sem rodeios.
Ele a olhou por um momento, depois baixou os olhos.
— Não foi esquecimento.
— Foi o quê, então?
— Uma tentativa.
Ela cruzou os braços, defensiva.
— De quê?
Lorenzo deu um passo adiante, mas parou a meio caminho.
— De dizer alguma coisa sem estragar tudo com palavras.
O coração dela apertou. Ele sempre tivera esse efeito: dizer pouco e deixar tudo por conta do olhar.
— Lorenzo, não sei o que você quer. Mas eu... não estou pronta pra... pra isso. Pra memórias. Pra fantasmas.
Ele assentiu, respeitando. Não insistiu.
— Tudo bem. Só queria que soubesse... que eu lembro. De tudo.
Ele colocou um envelope sobre o balcão e saiu, sem mais uma palavra.
Isadora ficou parada, observando a porta balançar. O envelope era leve, fino, quase vazio. Dentro, havia uma foto antiga: ela, ele e Elisa — a irmã dele — sentados na pedra perto do farol, rindo. Era verão. Eles tinham 19 anos. Ainda não sabiam sobre perdas, ou fugas, ou dor.
E atrás da foto, uma frase rabiscada:
“A gente só percebe o valor de um momento quando ele vira lembrança. Eu queria que isso fosse presente de novo.”
Isadora sentou-se devagar, os olhos marejados. Apertou a foto contra o peito. Era cedo demais. Era tarde demais. Era... tudo ao mesmo tempo.
—
Naquela mesma noite, ela recebeu uma ligação de um número desconhecido.
— Isadora Almeida? — diz uma voz feminina, nervosa. — Sim, quem é?
— Você não me conhece. Mas... eu soube que Lorenzo voltou. (pausa)— Eu preciso te contar uma coisa. É sobre ele.






